quarta-feira, 27 de julho de 2011

O PORTADOR DA LUZ - Parte 5


O ambiente era opressor, muito embora fosse apenas uma sala fechada e sem janelas, muito comum à maioria dos grandes prédios de escritórios. Ainda assim, para José Marcindo Gomes, parecia-lhe a antessala do Inferno. Sentado em uma cadeira, tendo à frente somente uma mesa vazia, ele tremia de nervosismo e ansiedade, quase de maneira descontrolada. Na mente, não lhe passava como teria sido possível tudo ter se precipitado da forma como ocorrera. Fora errado ter-se envolvido pessoalmente, sabia disso, mas sequer cogitava em questionar os desígnios de José Cândido Renan, ou melhor, o Ministro, como fazia questão de ser chamado.

Quando a porta se abriu às costas, nem se virou, pelo contrário, afundou o rosto, cobrindo-o com as mãos. Temia olhar as faces do homem que adentrara, temia-lhe os olhos e, mais ainda, suas palavras, mesmo as suaves, as de fé e de dignidade. Ainda que falasse sobre bondade e benevolência, aquela voz lhe transmitia medo desmesurado.

– Marcindo.

O tom com que fora proferido o nome, apesar de soar calmo e moderado, lhe penetrou os ouvidos como facas, rasgando e ferindo-lhe o cérebro. No instante seguinte, duas mãos pousaram-lhe nos ombros, fazendo-o estremecer.

– Meu bom Marcindo.

Ele fez uma tentativa vã de se voltar, mas aquelas mãos pressionaram-lhe com maior intensidade, deixando claro que deveria permanecer como estava, sem se virar. Gotas de suor porejavam-lhe à testa, seguidas de um gosto acre, que lhe subia à garganta. Só reprimiu a ânsia à custa de muito esforço.

– Não se preocupe – disse a voz branda, como lhe adivinhando os pensamentos. – Se esta era a vontade d’Ele, não há porque se preocupar, está tudo bem. Todos nós erramos, e foi apenas isso o que aconteceu, você errou e errar é do homem.

– M-ministro, eu...

– Shiiii... não é necessário dizer coisa alguma, estou ciente.

Marcindo balançou a cabeça, quase frenético, concordando.

O homem às costas aproximou-lhe o rosto, falando-lhe junto ao ouvido.

– Você pode ir, eu o perdoo. Você apenas não deve falar nada sobre nossos contatos.

– M-ministro, a polícia... eles querem...

– Sei bem o que querem, Marcindo, e não haverá problema algum. Jamais deixaria um dos nossos ao alcance das feras, nunca abandonaria qualquer um às sombras, que se infiltram nos corações dos homens. Nosso corpo jurídico já se encontra tomando providências para que todas as acusações sejam retiradas.

– Ministro, eu n-não sei como agradecer e...

– Esqueça... isto é o mínimo que posso fazer por alguém tão dedicado e que sempre colocou a Luz e a Verdade acima de tudo. Contudo, para que o Mal não prevaleça, preciso uma vez mais de sua ajuda, seus préstimos. Ninguém deve saber que nos conhecemos, além de possíveis encontros casuais em nossos cultos. Percebe como tal seria perigoso? Pode fazer isso por mim, Marcindo? Por Ele?

– P-posso, Ministro, p-posso! Qualquer coisa que pedir, eu juro... eu...

– Não há necessidade de juramento, meu bom homem, sua palavra me basta, é a maior garantia que alguém pode dar. Agora vá, descanse um pouco e manhã ou depois, quando achar conveniente, retome suas atividades. Assim como Ele perdoa, também sei perdoar, afinal, esta não é a nossa maior graça?

– S-sim, Ministro, o senhor tem razão, como sempre. Abençoada seja a sua visão privilegiada! Muito obrigado por sua compreensão... muito obrigado!

– Não agradeça a mim, Marcindo, sou apenas um humilde homem fazendo o trabalho a mim designado. Agradeça a Ele e a graça que lhe foi concedida.

O homem lhe soltou os ombros e se afastou. Marcindo se levantou, atrevendo-se a olhá-lo, porém o homem permaneceu estático, claramente com os olhos voltados à outra direção, deixando claro que, apesar das palavras ditas,  não se dignaria a se voltar a ele. Marcindo murmurou mais um obrigado, repetido algumas vezes, e se despediu, tão baixo que sua voz era quase inaudível, deixando a sala em seguida.

Renan permaneceu imóvel por uns minutos, sinalizando em seguida a outra pessoa, que se postara à porta, seu advogado pessoal.

– A informação foi passada? – questionou com voz fria, sem se virar, como se falasse para as paredes nuas à frente.

– Está tudo certo – confirmou o advogado, com um leve aceno de cabeça. – Eles cuidarão dele.

– Ótimo – respondeu, de modo seco. – E quanto ao fornecimento, ainda é confiável?

– Sem dúvida, desde que agora tratemos pessoalmente com eles. Continuam interessados, porém, depois do ocorrido, só aceitarão se tratarem diretamente com a cúpula.

As faces de Renan se endureceram, pensativo, mas apenas por poucos instantes.

– Tudo bem. Se formos cautelosos, isso não será importante. Em breve, chegaremos à parte mais delicada e precisaremos contar com o apoio deles. Desenvolver outro fornecedor nos tomaria tempo por demais precioso.

Por fim, o Ministro se voltou para o advogado.

– Você deverá tratar de tudo, pessoalmente. Só posso confiar em você para o que vem à frente.

– Assim será feito, Ministro – confirmou o advogado e saiu.

Sozinho na sala vazia, o homem ficou mais um bom tempo estático, simplesmente olhando para lugar algum. Contudo, não eram paredes vazias que ele enxergava, era o futuro. A Luz e a Palavra; o Raio e o Trovão.
 
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Marcindo saíra pelos fundos e evitara a imprensa, conforme lhe fora orientado. Livre desse assédio, dirigiu-se à sua residência, em um bairro tranquilo e afastado. Contudo, não chegou a entrar em casa, mal vendo o estranho se aproximar. Os dois disparos a queima-roupa o jogaram contra a porta, desabando sem vida, em seguida. O desconhecido tomou-lhe o celular e a carteira, para forjar um assalto, pulando pelo muro e sumindo na rua.

O recado fora claro; Casimiro não admitia falhas.
 
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Duas semanas depois.

A Logística levantara toda e qualquer informação sobre a Igreja da Luz e da Revelação, assim como sobre seu fundador, João Cândido Renan. Apesar disso, não achara nenhum indício que os ligassem ao contrabando de armas ou a qualquer contato com Casimiro.

Nesse meio tempo, o envolvido direto no incidente havia sido morto, em uma possível tentativa de assalto, à porta de casa, algo bastante comum naqueles dias, mas também, bastante conveniente. Apesar de participar do médio escalão da igreja, não fora possível associar Marcindo a Renan em nenhuma ocasião, tendo o corpo jurídico da igreja se manifestado que aquele havia sido um ato isolado de uma pessoa desesperada, despreparada e de pouca fé, tendo se deixado sucumbir ante a vontade do Mal e das sombras, e que a entidade lamentava muito o ocorrido, envolvendo um de seus seguidores.

Contudo, os fatos continuavam a se alastrar.

O coronel Campos ficou olhando a tv, muito embora não se detivesse às imagens. Os pensamentos se atropelavam, procurando dar algum sentido a tudo aquilo. As chamadas havia se iniciado há poucos dias e, agora, Renan em pessoa passava a aparecer na mídia televisiva, primeiramente destacando aquilo que chamava de “Passeata pela Palavra”, um ato público de fé, que se iniciaria com a reunião de fiéis no Maracanã, em um domingo, dali a pouco mais de um mês. Ao mesmo tempo em que Renan procurava divulgar e despertar o interesse das pessoas, seus advogados trabalhavam para obter as autorizações necessárias. Após a reunião, o culto pretendia realizar uma passeata simbólica pelos direitos de protestar contra os maus costumes, que cada vez mais, nas palavras deles, infestavam e dominavam o país em todos os escalões sociais.

Um dos pontos de preocupação de Campos era relativo à adesão de várias personalidades da sociedade, fossem políticos de renome ou artistas de destaque. Em curto espaço de tempo, a despeito das notícias sobre a apreensão de armas e o envolvimento de um de seus funcionários, a Igreja da Luz e da Revelação ganhava influência e prestígio, e com isso, poder.

Ele não gostava daquilo. Algo se achava de muito errado, o instinto lhe dizia. No entanto, apesar de toda malha fina de investigação, seus homens apenas descobriram a intenção de Renan de passar a apresentar, a partir dos próximos dias, sermões diários, voltados aos fiéis. Em outras palavras, nada de novo em relação à pregação que já ocorria, de maneira desmedida, nos meios televisivos.

O coronel desligou a tv e se recostou. Por hora, havia pouco a fazer. Teria de se contentar em ouvir o que aquele homem pretendia dizer.
 
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– ...e haverão de temer os pecadores, que não se fartarão à punição sem clemência, pois é isso que nos ensina a palavra. Então, aqueles que honram a herança e o saber, a bondade e a misericórdia, também honraram as horas difíceis e de provação, mas com Ele no coração, nada mais serão que apenas uma fagulha de menor importância, no seio da harmonia infinita que haverá de se seguir!

O homem se calou por um breve instante, em uma pausa ensaiada, para dar mais peso e intensidade às frases proferidas. E após algum tempo de silêncio, finalizou de maneira dramática.

– E por fim, vos pergunto, a mesma questão de há milênios: se Ele está comigo, quem estará contra mim?

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O quarto de hotel era luxuoso, mas não ao extremo, exatamente aquilo que caberia a uma representante de uma industria estrangeira, em negócios no país.

A jovem, registrada sob o nome de Tatiana Michalovna, desligou a tv, intrigada sobre o discurso que acabara de ouvir. Aquele homem lhe era estranho, pregava amor e misericórdia ao mesmo tempo em que conclamava a punição e inclemência. No fundo, não via diferença entre outros tantos fanáticos, muito embora, algo naquele olhar lhe inspirava desconfiança e cuidados. Fosse como fosse, aquela não era uma de suas preocupações. O contato de Casimiro confirmara o pedido de dez mil Kalashnikov AK-47, com quarenta mil pentes extras, o que daria quatro reservas para cada arma.

Contudo, o que mais saltava aos olhos, destoando pelo fato de ser inusitado, eram vinte mil modernas pistolas Tocarev TS, que dispensavam a utilização de silenciadores e ainda assim, quase perfeitamente silenciosas. Fruto de um desenvolvimento recente de alta tecnologia, a potência permitia-lhe transpassar sem dificuldade um capacete de kevlar ou uma placa de aço de dois milímetros de espessura, a uma distância de vinte e cinco metros, sem comprometer-lhe a capacidade de impacto. Seu uso era exclusivo das SPETSNAZ (SPETSialnogo NAZnacheniya - Unidade de Operações Especiais) ou da SVR, Sluzhba Vneshnej Razvedki, o equivalente russo da CIA.

A jovem apertou os lábios. Aquele homem, um líder das muitas seitas que de desenvolviam naquele país, estava se armando de modo superior a qualquer traficante e, mesmo, a muitas guerrilhas ou pequenos exércitos. Não imaginava o que ele poderia ter em mente. Talvez, uma verdadeira revolução armada. No entanto, deixou os questionamentos de lado, não se encontrava ali para isso. O pedido fora confirmado e era hora de contactar Moscou.

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Nelson Magrini por Nelson Magrini:

Nelson Magrini é Engenheiro Mecânico, estudioso e pesquisador em Física, com ênfase em Mecânica Quântica e Cosmologia. Escritor, professor e consultor em Gestão
Empresarial e Cadeira Logística, além de Agente Literário, com serviços de Revisão Ortográfica e Gramatical, Preparação de texto (Copy Desk), Leitura Crítica e outros.


É autor de CEIFADORES – Anjo a face do mal II, ANJO A Face do Mal e Relâmpagos de Sangue (Novo Século Editora), de Os Guardiões do Tempo (Giz Editorial) e de ter participado das coletâneas Amor Vampiro, com o conto Isabella (Giz Editorial), e Anjos Rebeldes, com o conto Em Nome da Fé (Universo Editorial). Foi elaborador e colaborador do Fontes da Ficção.

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