terça-feira, 27 de setembro de 2011

OS GUARDIÕES DO TEMPO - Trecho do Capítulo 1


SERÁ QUE O CÉU PODERIA ESPERAR, AO MENOS UM POUCO?


– Droga, droga e... droga!

– Nossa, Rogério, você só reclama. Tá parecendo a vó, de tanto resmungar! – disse Ciça.

– Bom, prá você pode tá tudo da hora, Ciça, mas prá mim, não tá. Estamos aqui, em plena noite, sozinhos, neste barquinho a remo, bem no meio do lago. E isso sem contar o frio que está fazendo.

– Rogério, já são quase quatro e meia da manhã, e isso não é plena noite – respondeu Duda. – Espere o tio Benê voltar com o restante das iscas, pois estas que pegamos não vão dar nem pro começo.

– E porque as iscas não estavam no carro?

– Bom, ele pediu para verificarmos tudo, e eu nem vou dizer quem ficou encarregado de checar as iscas.

– Por que? Vai dizer que era eu?

– Hum, hum – responderam Duda e Ciça, ao mesmo tempo, concordando com a cabeça.

– Engraçado, muito engraçado. Prá vocês, sou o culpado de
tudo.

– De tudo não, Rogério – respondeu Ciça rindo. – Só daquilo que você apronta.

– Vocês é que estão de marcação comigo! Foi por isso que riram da minha roupa, depois que me troquei e fui para o carro. É que vocês não entendem nada de pescaria e estão com inveja, isso sim!

Ciça olhou para Duda e deu outra risada abafada.

– Rogério, não fique chateado – disse Duda. – Você tem razão, nós rimos porque somos bobos, e não porque você me aparece com um colete que tem... hum... deixa eu ver, vinte e três bolsos, além é claro, desse chapéu com essas imitações de iscas penduradas na aba e...

E Duda não conseguiu mais se segurar e, junto com Ciça,
caiu na gargalhada.

– Vocês é que não entendem nada de pescaria! Desse tatu nem perco tempo em falar, mas você, Ciça...

Rogério deixou a frase no ar, olhando assustado para os lados.

De súbito, o barco, e tudo que havia nele, começou a tremer e
vibrar.

– O-O-O que-e é-é i-i-isso? – perguntou Rogério, com dificuldade
para articular as palavras, a intensa vibração fazendo-lhe os dentes baterem.

– S-Sei l-lá, tá-á tudo v-vibrando como louco! – respondeu Duda, olhando à volta, tentando encontrar uma explicação.

E não era apenas o barco ou as águas do lago. Para onde olhassem, havia a impressão de que tudo vibrava, incluindo o próprio ar, fazendo as imagens tremeluzirem, tornando a paisagem fantasmagórica, como se a paisagem fosse desvanecer.

No céu, uma vermelhidão crescente tomou conta da escuridão, e em poucos segundos, as próprias nuvens pareciam incandescentes.

De súbito, uma imensa bola de fogo emergiu das nuvens e se precipitou nas águas do lago. O impacto imediatamente gerou uma imensa onda contra a embarcação, arremessando-a para o alto.

Duda, Ciça e Rogério se seguravam como podiam, jogados para cima junto com o bote que, por pura sorte, não virou, quando alguns segundos depois, se precipitou, chocando-se com forte impacto contra as águas agitadas. Isso, porém, não impediu os três de tomarem um grande banho frio.

– Ah, não, de novo, não, caraca! – praguejou Rogério, cuspindo um bocado de água.

– Mas o que foi isso? – perguntou Ciça, assustada, ainda agarrada com força à borda do barco, com água escorrendo pelos cabelos e rosto.

– Acho que foi um meteoro! – respondeu Duda. Embora molhado, ele se encontrava excitado com a possibilidade de um meteoro ter caído tão perto. – Um meteoro gigante e incandescente!

Mas as deduções de Duda foram contrariadas de imediato. Novamente, as águas começaram a vibrar e se agitar. A partir do ponto
de impacto, ondas começavam a se levantar, cada vez mais intensas,
jogando a embarcação para todos os lados.

– Ai, o barco vai virar!

– Não fala isso, Ciça, chega de banhos frios por hoje! – respondeu Rogério, tentando se firmar para não ser atirado para fora.

Contudo, em poucos minutos, do mesmo modo como começara,
as ondas diminuíram, até que as águas se acalmaram, mas não houve tempo para recuperar o fôlego.

– Olhem! – gritou Duda.

Lentamente, um imenso objeto metálico começou a se erguer do lago. A água escorria por sobre a estrutura que emergia e, pouco a pouco, todo o corpo do objeto foi se revelando, flutuando a poucos centímetros da superfície.

Duda, Ciça e Rogério se achavam imóveis, os olhos grudados na súbita aparição. A menos que os três estivessem sonhando, aquilo realmente parecia uma nave espacial.

Subitamente, as águas se iluminaram. Um facho de luz partiu da parte de baixo do misterioso artefato, rente à superfície do lago. O facho estendeu-se até o barco, envolvendo-o por completo.

A luz não chegava a ofuscar, embora dificultasse a visão dos garotos.
Duda levou a mão em forma de concha aos olhos, procurando protegê-los e ver mais claramente. Uma estreita abertura aparecera ao fundo da nave, e ele pensava ter visto uma figura saltar para o facho de luz.

– Ei, vocês viram isso? Tem alguém ali! – disse Rogério, por cima dos ombros de Duda, apontando para o objeto.

Para surpresa de todos, o estranho começou a caminhar através da luz, como se andasse por cima das águas. Quase ao mesmo tempo, os três suspiraram aliviados. Eles não sabiam quem era o estranho ou de onde viera aquele gigantesco objeto, no entanto, se sentiam mais seguros ao verem uma figura semelhante a um homem, que se dirigia ao barco. Ainda assim, permaneciam em silêncio, o coração batendo acelerado.

A figura continuou caminhando até chegar próximo. Ele não trazia nada de especial em relação a equipamentos ou roupas. Salvo o fato de trajar uma espécie de macacão, todo negro, com botas ou sapatos integrados à roupa, sua aparência não tinha nada de anormal ou assustadora.

– Seu nome é Eduardo Junqueira Silva, não? – questionou o homem, falando com um sotaque estranho e apontando para Duda.

– S-Sim, sou eu – respondeu, perplexo, balançando a cabeça
sem perceber, em sinal afirmativo.

– Nós precisamos da sua ajuda.

– M-Minha ajuda? Mas... nós, quem?

– S-Sim, quem é você? – perguntou Ciça, encolhida e assustada, atrás do irmão e do amigo.

– E de onde você vem? – completou Rogério, nenhum deles sequer se dando conta de que continuavam encharcados.

– Sou o tenente Vus Rans. Represento o Alto Comando do Império Galáctico, do ano de 4612, e nós precisamos de sua ajuda, Eduardo.

Duda apenas ficou de boca aberta, sem conseguir dizer qualquer
palavra.

– 4612? É sério? – perguntou Rogério, por fim, assim como os demais, visivelmente espantado.

– Muito sério, não tenha dúvida. Eu não faria uma viagem dessas se a situação não fosse de extrema seriedade.

– Mas como você me conhece e por que precisa de mim? – perguntou Duda, tentando ordenar os pensamentos e sobrepujar a surpresa.

– É uma longa e complicada história. Vamos até a minha nave.
Lá será mais fácil lhe mostrar o problema que temos, além de vocês poderem se secar.

Eles se entreolharam por um momento, só então se dando conta de que continuavam completamente encharcados e com frio.

– Nem pensar! – gritou Ciça, a primeira a quebrar o silêncio
que se seguiu. – Como vamos saber que, uma vez lá dentro, você
vai nos deixar sair de novo? E o que nos garante que você não é um
alienígena malvado se fazendo passar por humano?

Embora surpreendido pela pergunta, o tenente Vus achou graça
da observação de Ciça.

– E por que eu faria isso? Se quisesse prendê-los, simplesmente
o faria, e não estaria aqui conversando com vocês, não acha, Maria
Cecília?

– Você sabe o meu nome também?

– Claro que sim. Sei que tem doze anos, e muitas outras coisas mais. E este aqui é o Rogério, estou certo? – perguntou, se voltando para o menino que se achava mais à ponta do barco.

– É... está certo, mas ainda assim não estou gostando dessa história, é muito estranha. Além do mais, precisava nos molhar deste jeito? Pelo visto, vocês não sabem pilotar muito bem essa coisa lá no ano quatro mil e sei lá quanto!

– Isso foi um acidente, não era nossa intenção causar inconvenientes.

Mais um motivo para vocês irem até a nave. Creio que devam estar com frio, com essas roupas molhadas.

Duda se levantou e encarou o visitante.

– É, está frio sim, mas você tem vantagens sobre nós. Você sabe um monte de coisas, mas não sabemos nada a seu respeito ou o que
quer com a gente.

– Está bem, podemos conversar aqui fora, mas lá na nave seria muito mais confortável, lhes garanto. Agora, se preferem ficar molhados, por mim, tudo bem, a decisão é de vocês.

Novamente, Duda olhou para Ciça e Rogério. Eles realmente estavam encharcados e com frio. O que aquele estranho falava tinha sentido. Não havia dúvida de que se quisesse levá-los à força, conseguiria
fazê-lo, ainda mais com uma tecnologia que o permitia andar sobre um facho de luz.

– E aí, o que nós fazemos? Vamos entrar?

– Bom, seria ótimo poder me secar, e você com certeza está

louco para ir, não está? – perguntou Ciça.

– E você, não? – respondeu Duda com outra pergunta, já sabendo
que, passado o medo inicial, a irmã deveria estar morrendo de curiosidade também. Aquilo era uma nave de verdade, e pelo que o homem dizia, uma que viajava no Tempo.

– E você, Rogério, o que acha?

– Bom, a nave é de verdade, não é? Está ali, e fim. Então,
o que mais podemos fazer? Dizer não, obrigado, nós não estamos interessados, e eles vão embora, nos deixando aqui completamente encharcados? De jeito nenhum! Esse foi o segundo banho gelado que tomei hoje, e isso tem que valer alguma coisa. Não vamos perder uma oportunidade dessa. Vamos lá, vamos conhecer essa nave por dentro.

– Ótimo – disse o tenente.

Rogério levantou a mão, pedindo um instante.

– Só me diga uma coisa: se você veio lá do ano quatro mil e
qualquer coisa, a mando desse tal de império, tinha que chegar justo
agora? Não dava para vocês, lá no céu, esperarem só um pouquinho
mais? – perguntou Rogério, sério.

– Mas por quê? – quis saber o tenente Vus, curioso, assim como Duda e Ciça.

            – É que eu ia dar uma lição de como se pesca para esses dois, e o seu império, que não tinha mais nada para fazer, foi me atrapalhar bem na hora! – respondeu Rogério, não esperando por qualquer comentário ou se preocupando com a cara de espanto de todos. Sem dizer mais nada, e com um sorriso de satisfação, se dirigiu para a grande nave, descendo do barco e caminhando sobre o feixe de luz.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

À LUZ DO DIA


História originalmente publicada na revista Scarium, nº 25, edição de maio de 2009.

Uma placa. Era tudo o que ela queria, apenas uma placa, mas sabia que seria querer demais, naquela estrada dos infernos.

Por um segundo, baixou o olhar para os mostradores, e foi quando o ponteiro da gasolina, no vermelho da reserva, lhe saltou aos olhos.

– Mas claro, só me faltava essa! Agora, além de uma placa, preciso de um posto de gasolina. E é óbvio que...

Rita se calou. A manhã era clara e com sol, e com nada a lhe obstruir a visão, naquela estrada reta e sem fim, ela por fim viu uma placa.

Reduzindo a velocidade, se aproximou devagar e estacionou na faixa de terra esburacada à direita, aquilo que alguém não muito esperto, ou esperto demais para ter desviado dinheiro de obras públicas, chamava de acostamento.

Mas o que importava era a placa.

Trevópolis.

Apenas o nome e uma seta indicando uma estradinha cercada pelo mato, ainda mais estreita e isolada.

Para Rita, mais parecia uma rua, mas pouco importava. Era uma cidade e lá, certamente, haveria um posto de gasolina, além de poder se informar sobre sua localização.

– Vamos lá. Quanto antes, melhor! – disse, em voz alta, tentando se animar, mas no íntimo, praguejando por não ter pegado a saída de costume. Graças a isso, acabara no meio do nada. E tudo para economizar um pedágio.

– Malditos políticos! Logo teremos pedágio até para sair de casa!

A via encontrava-se em péssimo estado, esburacada e com mato alto de ambos os lados, o que a impedia de desenvolver acima de cinquenta quilômetros por hora. A princípio, também lhe parecia outra reta sem fim, mas logo se deparou com uma curva fechada à frente e, em seguida, um posto de gasolina.

Um sorriso aflorou-lhe ao rosto, certa de que aquela manhã, para fazer jus ao sol e ao lindo céu sem nuvens, entraria nos eixos. Rita manobrou e encostou ao lado da bomba assinalada gasolina e esperou. Contudo, após um tempo, começou a crer que ninguém a percebera.

– Alô... é para hoje! – disse em voz alta, buzinando em seguida.

Passaram-se mais alguns minutos e ela continuou ali, sem que ninguém aparecesse.

– Oi! Não tem ninguém para atender? – perguntou, descendo do carro, sem obter qualquer resposta.

Sem perder mais tempo, destravou a bomba e conectou-a ao bocal. Já vira os frentistas fazerem aquilo tantas vezes que não era segredo algum.

– Pronto, sem frescuras! Agora é só pagar, descobrir onde estou, e cair na estrada.

Rita se dirigiu a uma construção de madeira, imaginando que ali deveria ser o caixa. Se aquela era a atenção que davam aos clientes, aquele posto deveria ter pouco movimento. De fato, não vira nenhum outro veículo, desde que ali chegara.

– Oi, como não me atenderam, eu mesma abasteci, e deu um total de...

Rita se calou. A construção de madeira abrigava uma pequena lanchonete com um balcão e três bancos, e o caixa, com a inconfundível armação para cigarros. Mas não havia ninguém ali.

Rita ficou imóvel, a meio caminho entre a porta e o caixa, pega de surpresa. Como era possível não haver ninguém naquele lugar?

– Alô... tem alguém aqui? – perguntou, olhando ao redor. Por um momento, imaginou que o responsável estivesse no banheiro, porém havia apenas um toalete, ao fundo, e a porta aberta não deixava dúvidas de que se encontrava vazio.

Mais curiosa do que irritada, Rita saiu, olhando todos os cantos. Fosse qual fosse a direção para qual virasse, não via sinal de pessoa alguma.

– Mas que inferno! Daqui a pouco vou embora sem pagar! – disse, em em alto e bom tom. – Alô... estou querendo pagar! Pagar! Se ninguém vier cobrar, vou embora! – gritou, ainda mais alto.

E ainda assim, ninguém apareceu.

De súbito, notou que não só não havia ninguém no posto, mas também na rua, nem mesmo carros. Rita achou aquilo muito estranho e, de repente, uma sensação de inquietação passou a incomodá-la. Que lugar seria aquele, uma cidade fantasma?

O pensamento em nada a confortou. No alto, o sol brilhava e a claridade do dia destoava daquele cenário. Uma vez mais, retornou para dentro. Ainda não se convencera de que não havia ninguém por ali. Aproximando-se, olhou atrás do balcão. Havia pão fresco, o que indicava que alguém estivera naquele local e pelo horário, ainda cedo, não poderia fazer muito tempo. Uma rápida vista no caixa e pode perceber que havia dinheiro, o que tornava a situação ainda mais inusitada. Quem, em sã consciência, deixaria dinheiro daquele modo, assim desprotegido?

E se a pessoa teve de fugir?

O pensamento a fez estremecer. Parecia razoável. Poderia ter havido uma tentativa de assalto e...

Uma fugaz sombra, percebida com o canto do olho, a fez se virar abruptamente.

O coração de Rita saltou, passando a bater acelerado, enquanto um frio lhe comprimia o estômago. Apesar do que pensara ter visto, não havia nada às costas.

Poderia ter sido um gato, refletiu. Ou pior, um rato. Não duvidaria, dada a aparência da lanchonete. Assim que se voltou e fez menção em sair, novamente lhe parecer ver uma sombra, ou um vulto, correr junto ao chão, às costas.

Rita se virou e ficou petrificada. Somente os olhos se moviam, indo de um canto a outro, quase frenética. Não havia nada ali, mas poderia jurar que vira algo, por duas vezes. Não podia ser imaginação.

De súbito, um sentimento de urgência se apoderou dela, e a vontade de estar fora daquele lugar falou mais alto.

Sem se importar pela gasolina, deixou a lanchonete e, uma vez mais, saiu à luz do dia. Por um momento, a claridade foi reconfortante, mas o coração quase parou quando, em seguida, percebeu outra vez o movimento vago e fugaz, sempre pelos contos dos olhos.

Havia algo ali, e agora se encontrava do lado de fora, junto a ela.

Rita se precipitou para o carro, entrando apressada e batendo a porta. Tudo o que queria era sair dali o mas rapidamente possível. Já nem lhe importava se informar. Tomaria o mesmo caminho que fizera, retornaria à estrada e voltaria até chegar à rodovia principal. Que aquele lugar fosse para o Inferno.

Todavia, sobressaltou-se quando percebeu os mesmos movimentos, imprecisos e difusos, através do retrovisor e à frente. Algo se movia rápido, correndo ou rastejando pelos cantos, mas algo que não conseguia precisar ou ver com clareza.

Rita nem quis imaginar o que poderia ser. O sentimento de urgência crescia ao extremo, agora se somando a angustia e medo. Tinha de sair dali o quanto antes. Deu a partida, engrenou a marcha e arrancou com um tranco, fazendo uma volta fechada, sem se importar com mão ou contramão, e retornou pelo mesmo caminho que viera.

O veículo avançava rápido, e Rita nem se preocupava com os buracos. Reduziu um pouco, assim que começou a contornar a curva fechada, o mínimo para fazê-la em segurança. Olhou pelo retrovisor algumas vezes, insistente, mas tudo em que pensava era se deparar com a grande reta e se afastar cada vez mais daquele lugar.

Rita contornou a curva e mais e mais, e de súbito, começou a achar que aquela curva se estendia bem além do que quando viera, mas como tal poderia ser possível?

Ela não tinha uma verdadeira referência para se basear, contudo, notou que se deslocava quase a noventa graus em relação ao mato, que outrora margeara a pequena estrada. Quando deu por si, percebeu que se embrenhava cada vez mais naquela cidade.

****

O Sol caminhava para o alto, indicando que o dia seria de muito calor. E era exatamente esse cenário calmo e tranqüilo que mais a angustiava. Era pleno dia, uma manhã belíssima, mas por qualquer rua que tomasse, não havia ninguém à vista.

Não demorou, chegou ao centro daquela cidadezinha. Dificilmente, ali haveria outro local com aquelas características, algumas lojas reunidas, uma lanchonete e um café, fora a praça, é claro. Cidade do interior que se preze, independente do tamanho, tem de ter uma praça.

Contudo, aquilo não a confortava nem um pouco. A falta das pessoas, somada à luz do dia, tornava a paisagem tão assustadora como se fossem trevas.

E o silêncio? Chegava a ser opressor. Não se escutava o menor ruído, o que tornava a paisagem ainda mais surreal.

Rita cogitou em descer e procurar por algum morador, mas a lembrança dos vultos, somada a irrealidade daquela solidão desesperada, a fez se manter dentro do carro e em movimento. A situação era muito pior do que aparentava. As pessoas não haviam ido embora, tornando aquela uma cidade fantasma. Havia carros estacionados e lojas abertas. Apenas não havia ninguém. Fosse o fosse que acontecera, deveria ter sido de repente, sem que os habitantes esperassem. Não fora algo como todo mundo fechar suas casas, pegarem seus carros e abandonarem a cidade; parecia que eles simplesmente haviam desaparecidos.

Rita continuava a seguir pela rua central. Acreditava que, em algum ponto, haveria uma indicação para a rodovia, um meio de sair dali. Ansiosa, olhou para o marcador de gasolina, reconfortada de que, agora, ele indicava tanque cheio. Assim que cruzou uma rua transversal, olhou para o lado, talvez na esperança de ver alguém, mas como vinha acontecendo, se apresentava deserta como as demais.

E foi nessa fração de segundo que viu. Primeiro um vulto muito rápido cruzando-lhe o ângulo de visão, sempre pelo o canto dos olhos. Em seguida, assim que retornou a visualizar a frente, freou de pronto, estancado o movimento do carro e arrastando os pneus contra o solo.

Há poucos metros, um muro lhe barrava o caminho. A longa rua central não existia mais.

****

Rita não pensou duas vezes. Engrenou a primeira e pisou fundo no acelerador, arrancando a toda, entrando à direita, uma descida acentuada, e acelerando com tudo.

Aquilo era uma loucura. Ruas e avenidas não mudavam de tamanho ou direção, assim como muros não surgiam do nada. A esta altura, se encontrava mais que apavorada. Algo irreal acontecia, e ela se via em meio àquilo tudo. E o que seriam as sombras? Há muito descartara a possibilidade de ratos ou qualquer outro animal; o que se movia não era nenhum animal, ao menos, algum que conhecesse.

De súbito, uma curva a frente a obrigou a frear e a reduzir. Caso entrasse naquela velocidade, capotaria com certeza. Ainda assim, os pneus guincharam em protesto pela curva em velocidade. A frente do carro guinou para a direita, fazendo-o oscilar perigosamente. Por um segundo, Rita achou que tombaria, que ficaria por ali mesmo e, se não sofresse nada de mais grave, sobraria a mercês daquilo que vinha ocorrendo.

Contudo, por sorte o carro guinou para o lado contrário, evitando por pouco de bater à guia, choque que certamente o faria capotar. Finalmente, Rita firmou o volante e conseguiu trazer o veículo para a trajetória correta, avançando em seguida pela rua, o suor lhe gotejando em abundância. Escapara por pouco, mas sentia que se não conseguisse deixar aquela loucura em breve, acabaria se machucando ou algo pior.

Contudo, não teve tempo sequer para se desesperar com a situação. Mal alinhou o carro, seus olhos saltaram com a surpresa. Em meio àquele nada imóvel em que se via envolvida, de súbito, outro carro se precipitava em direção contrária, vindo à toda velocidade contra ela.

****

Rita freou violentamente, fazendo o veículo derrapar outra vez. O choque era inevitável, mas o grito de pavor ficou-lhe preso à garganta, quando o impossível aconteceu. Como se nunca houvesse existido, o outro veículo sumiu.

Por fim, o grito se soltou, forte e desesperado. Lágrimas rolavam por seu rosto. Era insano, não podia estar acontecendo. Mas para seu desespero, parecia ser apenas o começo. Assim como o carro, preste a abalroá-la, outros estacionados começaram a desaparecer, e não era só. O mesmo acontecia em prédios e casas. Tudo à volta parecia estar sendo engolfado pelo nada. E foi quando viu, com o canto do olho, não uma, mas dezenas de sobras furtivas, correndo entre os cantos. E desta feita, vinham em sua direção.

E foi nessa fração de segundo que percebeu, à direita, separada apenas por uma pequena calçada, o caminho pelo qual viera, a estada ladeada de mato. Rita engrenou a marcha e acelerou com tudo, passando por cima da calçada, impondo tormento a seu veículo. Mas não se importou com isso. Assim que chegou à estradinha, avançou a toda velocidade. Mais ao longe, podia ver fugazes  sombras serpenteando, aparecendo e se escondendo.

Respirou aliviada quando chegou à estrada e tocou rumo à rodovia principal. Que aquele lugar fosse para o Inferno. Talvez estivesse indo mesmo.

E enquanto o carro desaparecia ao longe, de súbito, a placa da cidade, indicando Trevópolis, se deslocou alucinada para um lado e outro, e após uma breve indecisão, desapareceu sem deixar vestígios.

No alto, o Sol brilhava forte e claro.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

O PORTADOR DA LUZ - Final


Entre o alerta da Logística e a preparação de uma força militar de emergência sitiada no Rio de Janeiro, e o envio ao Corcovado, passaram-se pouco mais de meia hora. Eram dois veículos médios velozes, que transportavam um total de quinze homens fortemente armados e especialistas em ações relâmpagos, sob o comando do capitão Gurgel.

– Sem complicação ou hesitação. Chegamos, entramos, anulamos a presença hostil e finalizamos.

– O indivíduo tem mesmo uma bomba atômica, capitão? Difícil acreditar, não?

O capitão voltou-se para o sargento, veterano tarimbado com anos de experiência em ações de assalto relâmpago.

– Foi o que disseram. Não ligo a mínima se ele tem uma bomba atômica, uma montanha de dinamite ou traques de São João. Nossas ordens são para eliminar a ameaça, inclusive com força letal, se necessário.

– Mas capitão, e se esse louco resolver explodir tudo assim que entrarmos? – questionou um dos soldados.

– Tá com medo de morrer, moleque? – respondeu um colega, mais atrás. – Pense assim, se isso acontecer, e esse maluco tiver mesmo uma bomba atômica, ele irá mandar todos nós para o ar, junto com o Rio de Janeiro! Cê vai passar desta para melhor, tendo a cidade maravilhosa por companhia!

O capitão Gurgel chegou a sorrir pelo gracejo.

– Ossos do ofício, rapaz. Quando você vestiu essa farda, sabia que sua vida poderia estar em jogo a qualquer hora. Mas não se preocupe, – prosseguiu, em tom conciliador – otimismo faz parte das qualidades desta equipe. Vamos chegar e eliminar a ameaça. Depois, o resto será história.

Em hipótese alguma, o capitão Gurgel imaginava quão verídica seria aquela última frase.

****

Ignorando a força militar que se movimentava e se dirigia às pressas para o Corcovado, Moisés apenas aguardava, olhando constantemente em seu relógio. Naquela manhã, os demais trabalhadores haviam sido dispensados, e ele se encontrava ali sozinho, compartilhando aquele momento de paz, apenas com o vento e o céu límpido e ensolarado. Como lhe haviam prometido, a grande caixa fora instalada, e caberia a ele apertar o botão.

Moisés era um misto de orgulho e ansiedade, a cada instante que se passava e com o tempo correndo para o derradeiro momento. O resto não importava, nada mais importava. Ele seria o braço de Deus e, para tanto, não se preocupava que pudesse perder a vida nesse ato, mesmo porque não seria a morte. Na verdade, seria o renascer para a verdadeira vida, aquela que é eterna e onde não havia pecado ou sofrimento, onde finalmente encontraria o esplendor de ser e o carinho tanto almejado. Conforme lhe garantira o bondoso, porém austero, senhor Renan, entregar a vida em nome do Senhor não é pecado; é uma oportunidade única e sem precedentes.

Moisés voltou-se uma vez mais para o relógio. Faltavam alguns segundos para o meio dia. A hora se aproximava. A luz e a palavra, o raio e o trovão se fariam presentes. Em seus pensamentos, uma frase que Renan lhe dissera há poucos dias ecoava com força e vigor.

O castigo divino não pode vir através de um controle remoto. Deve vir através das mãos de seus seguidores. Suas mãos, Moisés!

Sem dizer nada, com um sorriso calmo e sereno, mas radiante, como em êxtase, ele pressionou o botão.

****

Os dois veículos avançavam velozmente. O que vinha à frente freou de leve, antes de iniciar o contorno da última curva, que o levaria diretamente à frente do monumento. Em dois ou três segundos, iria contorná-la e parar defronte à estátua.

Contudo, aqueles segundos derradeiros se perderam na eternidade.

****

Primeiro veio a luz invisível, que precedeu o silêncio.

Por frações imperceptíveis de segundos, as pessoas ficaram transparentes; tudo ficou transparente, banhados por fortíssima radiação gama.

A seguir veio o raio, e todos ficaram cegos. Contudo não chegaram a se aperceber disso. Nessas mesmas frações de segundos, foram todos instantaneamente vaporizados pelo fogo, a temperatura beirando próxima a um milhão de graus centígrados. A água do mar entrou em ebulição e se vaporizou, assim como ferro e concreto.

E só então, em meio a ventos avassaladores, veio o trovão.

No entanto, já não havia nada nem ninguém vivo para escutá-lo.

****

Estados Unidos. Noticiário noturno da CNN.

– Boa noite. O mundo chocado e em alerta – iniciou o âncora com a manchete de destaque. – O mundo ainda está em estado de choque pelo ocorrido no Rio de Janeiro, Brasil, há algumas horas, apenas. A notícia do primeiro atentado nuclear assombrou os governos de todos os países, uma temeridade real entre muitos que se vêem envolvidos com ameaças terroristas. Mas ninguém poderia imaginar que uma tragédia dessas proporções atingiria um país que não possui participação direta em tais questões. As preliminares indicam mais de dois milhões de vítimas fatais, mas esse número ainda deve aumentar nos próximos dias, por causa da intensa radiação que assola a região devastada, e pelos ventos, que devem espalhar essa mesma radiação para áreas adjacentes.

A figura do repórter foi substituída por imagens da tragédia.

– No momento, é impossível de se determinar a extensão dos danos, mas seguramente é o maior desastre ecológico do planeta, bem como o de vítimas causada por uma arma de destruição em massa, e tudo devido ao fanatismo e a loucura de um homem, João Cândido Renan, um pregador intolerante com os demais, em relação às suas crenças. Após o ocorrido, Renan foi localizado na sede da Igreja da Luz e da Revelação, em São Paulo. Pelo que foi apurado, em sua loucura, Renan não procurou fugir e pretendia fazer uma declaração aos meios de comunicação, exaltando a todos à volta a uma vida regada e austera, se quisessem fugir à punição de Deus. Contudo, quando cercado pela polícia e agentes de segurança, João Cândido Renan fugiu pela única saída que tinha, atirando-se do décimo andar de seu prédio. Todos os demais envolvidos com a direção da entidade foram detidos.

As imagens desapareceram, voltando ao âncora.

– O ocorrido não deixa dúvidas, e a verdade se mostra ao mundo da maneira mais dolorosa possível. O fanatismo, em todas as suas extensões, é hoje, seguramente, o maior medo da humanidade.

Em seguida, houve o corte para os comerciais, retornando ao âncora, instantes depois.

– E atenção, notícia de última hora. Conforme se apurou, João Cândido Renan estava de posse de duas ogivas nucleares. O paradeiro da segunda é desconhecido.

FIM?

Nelson Magrini por Nelson Magrini:

Nelson Magrini é Engenheiro Mecânico, estudioso e pesquisador em Física, com ênfase em Mecânica Quântica e Cosmologia. Escritor, professor e consultor em Gestão
Empresarial e Cadeira Logística, além de Agente Literário, com serviços de Revisão Ortográfica e Gramatical, Preparação de texto (Copy Desk), Leitura Crítica e outros.


É autor de CEIFADORES – Anjo a face do mal II, ANJO A Face do Mal e Relâmpagos de Sangue (Novo Século Editora), de Os Guardiões do Tempo (Giz Editorial) e de ter participado das coletâneas Amor Vampiro, com o conto Isabella (Giz Editorial), e Anjos Rebeldes, com o conto Em Nome da Fé (Universo Editorial). Foi elaborador e colaborador do Fontes da Ficção.

nelson_magrini@yahoo.com.br