sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Trecho do Prólogo de: ANJO A FACE DO MAL.


E, ao longo dos anos, o anjo sorriu para Mário diversas vezes. Primeiro, nas corridas de cavalo, junto a bookmakers que bancavam apostas; depois, em todo tipo de jogo de azar. E Mário jogava muito, e ganhava muito, sempre, todas às vezes. O curioso é que isso só acontecia em jogatinas ilegais. Sua sorte parecia não funcionar e jogos oficiais, sorteios de programas de televisão ou o que fosse. Porém, Mário não se preocupava com isso. O que importava era a grana, o dinheiro fácil, e dinheiro era o que o mantinha no topo.
Roupas caras, carros de luxo, mulheres e noitadas. Todos queriam ser amigos de Mário, todos o invejavam e lhe cobiçavam a sorte. Ele era o rei e se encontrava no topo.
Entretanto, um dia, Mário perdeu; perdeu uma vez, duas, várias vezes. Mas não se abalou com isso. Dizia que era apenas um pequeno revés, para tornar a vida mais interessante, para que a emoção do jogo fosse maior. Ele não acreditava que seu anjo havia ido embora, que o havia abandonado. Tinha o dom, a sorte, e aquilo poderia acontecer de vez em quando, mas seria insignificante perto do que ele era e alcançara.
E Mário continuou jogando, jogando muito. As somas eram altas e seus credores, poderosos. Porém, apesar do que ele acreditava, continuou a perder cada vez mais, e quanto mais perdia, mais alto jogava. E foi quando a vida deixou de ser tão interessante. O jogo já não trazia mais emoção e sim, desespero. Não era prazer, mas compulsão. Já não mais sabia parar, não podia, não queria, tinha de recuperar a sorte e a fortuna. Tinha de voltar ao topo.
Contudo, seu anjo já não se achava mais ao seu lado, e ele perdeu tudo o que havia conquistado.
Agora, sem dinheiro ou amigos, sem nada, vivia nas ruas, nos becos escuros e sujos, quase sempre bêbado de álcool barato, comprado com esmolas que ganhava ao longo dos dias. Mas, ainda assim, acreditava e sentia que um dia seu anjo voltaria e, com ele, a sorte e o topo. Sabia que isso aconteceria um dia e esse dia, muito bem, poderia ser hoje.
De repente, o vento gelado entrou pela abertura do abrigo improvisado, fazendo-lhe o corpo tremer de frio. Mário olhou para a garrafa, procurando por algum resto de bebida, mas nada encontrou. A pinga havia acabado e a garrafa vazia lhe trouxe mais tristeza.
Revirando os bolsos das velhas calças, puxou algumas poucas moedas e mais nada, insuficientes para uma compra. Por esta noite não haveria mais álcool e ele teria que se conformar com isso, com o que a vida estava lhe dando. A não ser que seu anjo voltasse e isso, muito bem, poderia acontecer hoje. O vento soprou uma vez mais, ainda mais forte e gelado, tão frio que Mário poderia jurar que lhe fazia feridas na pele.
As caixas de papelão tremeram e se inclinaram, protestando contra aquele açoite invisível. Se a intensidade aumentasse, seriam derrubadas, levadas para longe como se não tivessem peso algum. Mário puxou o velho e imundo cobertor ainda mais para si, e elevou a gola do surrado sobretudo, tentando se proteger melhor, quando algo lhe despertou a atenção.
Havia uma fina névoa do lado de fora, uma neblina que se formava e que ele podia ver através da abertura do abrigo. Entretanto, não era uma neblina comum, como tantas outras que se cansara de ver, nas noites de inverno; era uma neblina diferente. Não tomava as paredes do beco, descendo do céu e chegando com o frio da madrugada, como seria de se esperar. Em vez disso, era densa, compacta, e se formava junto ao chão, rasteira, vindo devagar, devorando pouco a pouco todo o espaço do beco, como um animal faminto que se aproxima sorrateiramente.
Um relâmpago fustigou-lhe a vista e, no entanto, não fora um relâmpago no céu, o céu se encontrava limpo e estrelado. Fora um relâmpago no chão, em meio à neblina que se aproximava lentamente. Apesar do frio, Mário se ergueu e se aproximou da entrada do refúgio, intrigado, percebendo com clareza outro relâmpago no chão, poucos metros à frente.
Ele estremeceu, sentindo o coração bater com força. Seria um sonho? Uma alucinação causada pela cachaça barata? Franziu a testa. Outra vez seus olhos viam luz em meio à neblina, porém, agora não mais um relâmpago, rápido e fugaz, mas uma luz compacta, duradoura e prateada, e que, sem aviso, começou a se espalhar pela fumaça esbranquiçada, transformando-a num mágico tapete alvo que recobria todo o sujo chão do beco.
Subitamente, a luz prateada elevou-se à frente de Mário, brilhante e imponente. Por um segundo, sua respiração parou e ele chegou a se assustar com a visão, mas, logo em seguida, tudo voltou ao normal. Ele se sentia bem, tão bem como há muito não acontecia. Não existia mais preocupação ou revolta, apenas paz e a luz prateada, uma luz angelical.
Mário sorriu, quase gargalhou. O coração se acelerava e batia ainda mais forte. Não era uma alucinação causada pelo álcool o que via, pouco importando se estava bêbado ou não. Sabia que aquilo iria acontecer um dia, e esse dia era hoje, tinha certeza. Era seu anjo que se encontrava à sua frente, seu anjo da sorte.
A paz em seu interior se intensificou, tornando-se ainda mais plena. Já não ouvia a raiva que o atormentava ou sentia as frustrações que o consumia. Mário não percebeu, tal seu estado de êxtase, que nem mesmo ouvia os ruídos da cidade, das pessoas nas ruas próximas ou dos carros, que cruzavam, em alta velocidade, à frente do beco.
Contudo, isso não importava. Ele estava só e, ao mesmo tempo, não se encontrava mais sozinho. Riu, em voz alta, por seu anjo que retornara e, desta vez, era para valer. Ele nunca avistara o anjo antes, porém, agora, ele estava ali, ao seu alcance, e era de verdade. Tinha que ir para a luz, ao encontro do anjo. Seu guardião iria envolvê-lo e protegê-lo, e com ele, subiria ao topo novamente.
Mário deu um passo à frente. A neblina tocou-lhe os pés. Deu mais um passo e depois outro. A neblina elevou-se até a altura dos joelhos. Ele não compreendia como ela podia se elevar, contrariando a vontade do vento, mas isso também não importava. Aquilo só podia ser mais um sinal de sorte.
A luz o envolveu. Mário esticou os braços e tocou a luz. A luz tocou Mário. Ele sentiu a consciência desmanchar, como se perdesse a própria identidade, a própria individualidade. Ele se sentiu amplo, sem os limites do corpo, calmo e tranquilo, como se estivesse sendo abençoado. Procurou o anjo; sabia que ele estava lá, bem no meio da luz. Deu mais um passo. Primeiro, viu o brilho; depois, garras e dentes.

Nelson Magrini por Nelson Magrini:

Nelson Magrini é Engenheiro Mecânico, estudioso e pesquisador em Física, com ênfase em Mecânica Quântica e Cosmologia. Escritor, professor e consultor em Gestão
Empresarial e Cadeira Logística, além de Agente Literário, com serviços de Revisão Ortográfica e Gramatical, Preparação de texto (Copy Desk), Leitura Crítica e outros.


É autor de CEIFADORES – Anjo a face do mal II, ANJO A Face do Mal e Relâmpagos de Sangue (Novo Século Editora), de Os Guardiões do Tempo (Giz Editorial) e de ter participado das coletâneas Amor Vampiro, com o conto Isabella (Giz Editorial), e Anjos Rebeldes, com o conto Em Nome da Fé (Universo Editorial). Foi elaborador e colaborador do Fontes da Ficção.

nelson_magrini@yahoo.com.br