quinta-feira, 25 de agosto de 2011

O PORTADOR DA LUZ - Parte 9


Aeroporto Internacional de Guarulhos, São Paulo.

A bela jovem já havia percebido o homem, momentos depois que ele adentrara ao saguão. Ela caminhou de modo aparentemente distraído, mas seus movimentos eram calculados e executados à perfeição. Ainda assim, o homem não demorava a surgir nas proximidades, embora ele mesmo fizesse o possível para passar despercebido. Não havia dúvidas, ele a seguia.

As opções da jovem eram muitas, ela havia sido muito bem treinada, mas seu perseguidor também não era nenhum principiante, e havia um detalhe bastante curioso, ele viera sozinho. Decidida, tomou uma escada rolante, que a levou ao mezanino superior, aproximando-se da grade que ladeava o grande vão central, como se observasse o saguão do alto, despreocupada, tal qual qualquer um que fizesse hora, aguardando seu voo. De maneira proposital, escolhera um lugar mais afastado, estando praticamente só. Instantes depois, o homem se postou ao seu lado, pouco menos de dois metros de distância.

– Deixando o país, senhorita Tatiana Michalovna? – perguntou, sem lhe voltar o olhar.

A jovem sorriu ao responder, deixando transparecer um sotaque que não possuía.

– Saudades de casa – respondeu, também mantendo o olhar fixo nos transeuntes abaixo. – São Petersburgo é linda nesta época do ano.

– E Moscou? Parece que você visita a capital muitas vezes, não?

Desta feita, a jovem se voltou para o homem, aproximando-se alguns passos.

– Meu trabalho me obriga a muitas viagens, mas você me parece um tanto curioso demais, não? – perguntou, alargando o sorriso.

– O suficiente para saber que seu nome verdadeiro é Pola Onatopp, e que trabalha para o FSB, Serviço Federal de Segurança, a antiga KGB, se me permite comentar, e atual Serviço Secreto Russo. É considerada eficiente, agente de elite, apesar da idade, tendo sido aprimorada em uma base secreta, em Severnaya.

– Vejo que fez sua lição de casa. Bastante eficiente, agente Francisco Gonçalves Silva, da SBI, mais conhecida como Logística. Mas vou poupá-lo de declamar sua ficha inteira de serviços. Creio que a conhece muito bem.

Desta feita, foi a vez do homem se aproximar.

– Então não necessitamos mais fingir. Temos algumas perguntas para você responder e...

– Agente Francisco, você não veio aqui para me deter, caso contrário, não teria vindo sozinho, e muito menos, quero crer que pretenda verificar se nos equivalemos em combate. Seja como for, vocês não têm nada contra mim, tirando algumas fotos, para as quais, é claro, tenho álibis incontestáveis. Então, se é para pararmos de fingir, por que não vai direto ao assunto?

O sorriso da jovem era franco e seguro. Francisco gostava daquilo.

– Está bem – respondeu o agente, retribuindo-lhe o sorriso. Pola Onatopp era, de fato, muito bonita. – O que tem para mim, de agente para agente?

A jovem ponderou por um momento, cedendo a seguir.

– Penso que não muito. Eu trabalhava infiltrada, dentro de uma das muitas facções da Máfia Russa. Foi nesse sentido que atuei como intermediária, junto a Casimiro, que era nosso contato aqui. Assim que um pedido grande de armas foi concretizado, tínhamos provas suficientes para deter a todos em meu país. Feito isso, minha missão terminou e fui chamada de volta. Contudo...

Francisco ergueu as sobrancelhas, incentivando a jovem continuar.

– Contudo, parece que o comprador fez uma conexão direta com outra facção, mas não sabemos o que foi vendido.

– Não sabem?

A jovem maneou a cabeça.

– Não. Existem muitos grupos dentro da Máfia Russa. Um sem número delas conta com a colaboração de ex-militares e, mesmo, de oficiais ainda na ativa.

– Você sabe algo sobre alguma operação que envolveu um submarino nuclear, nas costas do Rio de Janeiro?

Desta feita, foi a vez da jovem cerrar as sobrancelhas.

– Não sei nada a respeito. Se foi usado um submarino nuclear, tenha a certeza de que foi algo bem grande.

– Poderia tentar descobrir exatamente o quê?

– Posso tentar, mas não posso prometer. Vou levar a questão aos meus superiores, mas mesmo que aprovem, pode levar tempo.

O agente Francisco agradeceu e se despediu. Contudo seu semblante não demonstrava descontração. Tempo era um artigo em falta.
 
****

Três semanas depois

– Apocalipse! Agora, a palavra de ordem é apocalipse!

O coronel encarou os outros dois homens. Aquela era a terceira reunião emergencial nos últimos dez dias.

– Francisco, repasse o que temos até agora – ordenou, com voz cansada, que denotava preocupação. As últimas semanas haviam exigido o máximo de todos empenhados naquele caso.

– No último mês, ficou claro o uso intenso de discursos de efeito para angariar pessoas à causa. O senhor Renan se torna cada vez mais explícito em suas mensagens, onde repetidas vezes as mesmas palavras aparecem, agora acrescidas de “apocalipse”, como o senhor bem colocou, coronel, assim como a frase “faremos todos eles pagarem pela expiação”. Também é intensa a conotação entre “a luz e a palavra” com “o raio e o trovão”. Por tudo que vem sendo demonstrado, creio que nos seja seguro presumir que Renan tem em mente levar essa expiação de fato, ou seja, levar a punição àqueles que ele acha que devem ser punidos.

– O que, pelo que podemos notar, é qualquer um que não seja adepto de suas crenças. – acrescentou Júlio, sempre mais ao fundo, de maneira franca.

– Em outras palavras, senhores – observou o coronel – um bocado de alvos em potencial. Precisamos de algo mais palpável em mãos. Com o que temos, não podemos detê-lo ou acusá-lo de planejar um atentado ou coisa que o valha.

– Sabemos disso, coronel – respondeu Francisco – mas há apenas este desenho. Temos suspeitas, mesmo que fortes, mas apenas suspeitas. Em realidade, até aqui, Renan apenas vem pregando um discurso inflamado. Nosso setor jurídico, inclusive, deu parecer desfavorável a uma interpelação com base no que temos. Se acuado, Renan facilmente poderá afirmar que se refere metaforicamente a essas questões. O próprio linguajar das escrituras, ou qualquer outro texto que ele siga, corrobora a afirmação. No mais, os incidentes envolvendo armas foram inconclusivos, e não se conseguiu estabelecer uma ligação dos fatos a ele ou a Igreja da Luz e da Revelação.

O coronel se levantou e caminhou até a grande vidraça. Olhar a paisagem, por um momento, sempre servia para desanuviar a cabeça e perceber novas idéias ou detalhes.

– Alguma notícia de sua amiga russa? – perguntou de repente.

– Bom, Pola Onatopp não é exatamente minha amiga – respondeu Francisco, com um breve sorriso – mas respondendo a questão, não, coronel. O último informe aconteceu ontem, e até a presente data, eles não tinham nada de novo.

O coronel se virou, abandonando a vista e se voltando para os dois agentes. Havia um brilho súbito em seu olhar.

– E aquele outro elemento, o tal de Moisés?

– Eu ia mesmo levantar essa questão, coronel – se manifestou Júlio, por sua vez. – Finalmente nossos esforços foram recompensados. Isto chegou há poucos instantes. Depois de ter sido apresentado com destaque junto a Renan, inclusive em seus comícios, ele havia desaparecido. Contudo, foi localizado no Rio de Janeiro, trabalhando em uma empresa de reformas prediais e de monumentos públicos.

– Trabalhando? – perguntou o coronel Campos, surpreso. – Assim de repente? E ainda por cima, no Rio de Janeiro? Algo não me cheira bem aqui.

– Concordo, senhor – respondeu Júlio. – Não dá para ignorar a coincidência. Foi na costa do Rio que se deu o incidente com o submarino.

– Talvez esses fatos não tenham ligação. Pelo que sabemos, o caso do submarino ainda é um mistério, até mesmo para a Inteligência Russa.

– Tem sim, Francisco, pode apostar que tem; o instinto me diz. Está tudo muito certo, certo demais. Você mesmo leu o levantamento feito pelo pessoal do Júlio. Esse Moisés foi uma criança abandonada que nunca conheceu os pais. Só não caiu no crime porque, desde cedo, acabou por prestar trabalho a igrejas regionais ou paróquias, tanto nas cidades do interior paulista, bem como na capital. Tem apenas o estudo básico, ministrado pelas muitas missões por onde passou. Sua figura é de uma pessoa tímida, inocente e que se presta a pequenos afazeres, dedicando o restante do tempo à religião. Contudo...

O coronel Campos deixou a frase aberta por um momento, antes de continuar.

– Contudo, pelo que conseguimos apurar, ele sempre foi fortemente influenciado por aqueles que dirigiam as igrejinhas por onde passou. Aqui é clara a identificação da figura paterna que nunca conheceu. De modo geral, padres e pastores são boas pessoas e, portanto, tais influências foram benéficas. Porém, o que se pode dizer ou esperar de alguém com uma visão distorcida como a de Renan?

– Sob esse perfil e nessas circunstâncias, certamente Renan teria nas mãos alguém facilmente manipulável, pronto para cumprir seus desígnios, possivelmente crente de que estaria agindo para fazer cumprir uma vontade divina – concluiu Francisco.

– Soma-se a isso, todo aquele palavreado dos discursos e temos claramente um cenário que está nos gritando a pleno pulmões sobre um atentado eminente! – concluiu o coronel, com raiva, reprimindo uma vontade de esmurrar a mesa à frente. – Temos as causas e um integrante potencial para cometê-lo.

– Certo, mas quando e onde? – questionou Júlio.

– Quanto ao “quando”, creio que devemos trabalhar com a hipótese, até mesmo por segurança, de que será em breve – respondeu Campos com convicção. – Vamos considerar o mais cedo possível. Em relação ao “onde”, como já afirmei, acredito fortemente de que o incidente no mar está diretamente relacionado como o nosso caso e, portanto, teríamos como alvo primário o Rio de Janeiro e, em segundo lugar, São Paulo, onde é a sede da igreja.

– Ok, trabalhemos com o Rio, para começar – ponderou Francisco. – E aí, voltamos à questão do submarino. Ao que tudo indica, Renan deve estar tramando algo grande, mas por que um submarino? Há maneiras muito mais fáceis de se contrabandear armas ou mesmo explosivos sem se expor em uma operação naval complicada, envolvendo, inclusive, o risco de um incidente internacional de enormes proporções!

– Esse é o ponto, Francisco. E a resposta para isso é que deve ter sido algo que não seria possível trazer pelos meios convencionais.

– Mas o que pode ser, para necessitar de um submarino nuclear russo? – perguntou Júlio, arrematando em tom de gracejo. – Uma bomba atômica?

O silêncio que se seguiu foi absoluto. Os homens se entreolharam, com medo das implicações daquela frase e suas possíveis conclusões.

– Espere aí, gente, eu só falei por falar! Vocês não acreditam mesmo que...

O coronel Campos fez sinal para que Júlio se calasse. Alguma coisa apertava-lhe o estômago, deixando um gosto amargo e azedo na garganta. Um frio gélido lhe subiu a nuca, quando um lampejo lhe surgiu em mente.

– No jornal da semana passada, li uma nota que destacava uma nova operação de limpeza e reforma no Cristo Redentor. Francisco, acesse no computador o nome da empresa e levante tudo sobre ela – disse, enquanto Francisco já corria para fora da sala.

– Mas... mas coronel... uma... bomba atômica?

Campos se voltou para o homem no oposto da mesa.

– Pode ser loucura, Julio, bem sei, mas pode não ser. E eu não vou desprezar qualquer hipótese neste caso, por mais absurda que seja.

Poucos instantes depois, a porta da sala de reuniões se abriu. Francisco, à entrada, se achava branco como um fantasma.

– A empresa é a mesma onde localizaram Moisés empregado. E tem mais. Estava muito bem disfarçada, o que evitou nossas checagens e cruzamentos de dados através da Igreja da Luz e da Revelação, mas agora não há dúvidas. A empresa pertence ao rol das firmas ligadas à organização.

– Mas porque se dariam ao trabalho de colocar uma bomba atômica no Cristo Redentor? – questionou Júlio.

– Pela altitude, Júlio – respondeu o coronel – pela altitude. Em solo, grande parte da energia seria absorvida pela Terra, diminuindo consideravelmente sua eficiência e poder de destruição. Mesmo a bomba de Hiroshima foi detonada a quinhentos e cinqüenta metros acima da cidade.

– Minha nossa! – exclamou Júlio, se dando conta, por fim, da magnitude da crise. – Então esse louco tem mesmo uma bomba atômica!

O silêncio que se seguiu só foi cortado pela voz do coronel Campos, que soou grave e distante.

– A Luz e a palavra. O apocalipse pelo raio e o trovão.

domingo, 21 de agosto de 2011

Trecho de EM NOME DA FÉ, meu conto na coletânea ANJOS REBELDES


– Como chamam a... isto?

A voz do anjo reverberou pelas paredes, um som tão divino que levou os fiéis às lágrimas. Muitos não notaram que os ouvidos sangravam.

– É... é... u-uma missa... – gaguejou o padre, envolto em êxtase.

– Missa... chamam a isto de... missa?

A sonoridade angelical se alterara. Apesar de manter o tom, a fala se mostrava mais dura, excruciante aos ouvidos, tornando o ato de escutar um martírio nunca vivido por alguém.

– Está errado... tudo errado.

A luz irradiada parecia dançar ao ar, a cada movimento dos lábios do anjo. Apesar da doçura com que eram pronunciadas, as palavras cada vez mais  açoitavam a mente dos presentes que, àquela altura, choravam, ouvidos e narizes sangrando, manchando-lhes a roupa. A maioria, ajoelhada, rezava de maneira frenética, entre soluços e lágrimas.

– M-mas... a-a-assim foi e-ensinado! – respondeu o padre, em prantos, o sangue brotando-lhe pelas narinas e orelhas.

– Não me refiro à ritualística... padre...

O tom de voz mais brando trouxe um pouco de alívio e acalento às pessoas. Já não se sentiam julgadas. Apenas ao abrandar o tom, o anjo transmitia esperança e perdão.

– Refiro-me aos sentimentos.. aos corações de todos que toco... àquilo que sentem e acreditam... fé... é sobre isso que falo...

O anjo se voltou aos fiéis. O sentimento de esperança se foi e, uma vez mais, medo e angústia se fizeram presentes. Era apenas silêncio, mal se ouvindo o sussurro dos que se perguntavam como poderia, na presença de um anjo, a esperança ser tão efêmera e fútil que mal se deixava notar?

– Devoção não é vir às igrejas... como se tal obrigação bastasse...

As palavras voltaram a torturar os fiéis, agora compelidos à expiação.

– Devoção também não é reger uma missa... ou rezar à noite...

O simples apontar para o padre, o fez gritar, como se queimasse por dentro. E ainda assim, o semblante do anjo estampava a calma divina.

– Devoção é sentimento de fé a cada instante da vida...

O anjo se dirigiu ao padre.

– Você não lhes ensinou nada...  e você mesmo, nada sabe... vou ensinar-lhes...

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

O PORTADOR DA LUZ - Parte 8


Mar territorial brasileiro. Costa do Rio de Janeiro.

A traineira suja e envelhecida se mantinha totalmente às escuras, com as luzes apagadas, mesmo as de sinalização. Ali, tão afastada da costa e naquela madrugada sem Lua, a embarcação era virtualmente invisível. A aparência velha e desleixada do barco era proposital e enganaria até olhos treinados. Em seu interior, contudo, contava com os mais sofisticados equipamentos e recursos disponíveis que o dinheiro poderia comprar.

E foi exatamente um desses aparelhos que detectou algo grande e submerso, que se aproximava a considerável velocidade. O grupo reunido no convés se entreolhou, embora palavras fossem desnecessárias; todos ali sabiam de quem se tratava. Seis homens prontamente se armaram com fuzis Kalashnikov AK-47 e se posicionaram ao longo da murada da embarcação, precaução comum, em situações como a que se seguiria.

O homem em comando acenou satisfeito. Presteza e dedicação eram fundamentais, e era o mínimo que ele exigia. Apesar de sua natureza e vocação religiosa, sorriu com o canto da boca ao escutar os fuzis sendo engatilhados e mortalmente prontos para o combate, se necessário. Admirava aquela arma. Eficiente, confiável, de fácil manejo e, principalmente, barata, podendo ser comprada por trinta dólares à unidade, em alguns países da África. Ele bem vira seu uso e eficácia, em termos de poder de fogo e intimidação, nas mais diversas nações pelas quais peregrinara naquele continente.

Por um breve segundo, se viu outra vez em terras miseráveis, assoladas pelo infortúnio e destrato, e abandono de governos, mas logo tratou de deixar o passado de lado. Aqueles eram outros tempos e lugares. Agora, se encontrava em casa, em seu país, e seria aqui que ele traria de volta a temeridade a Ele nos corações dos homens.

Com um movimento firme e decidido, passou a esquadrinhar o mar, auxiliado por um binóculo militar de última geração. Apesar das proporções gigantes, sabia que aquilo que procurava também se encontrava invisível no escuro da noite. De acordo com os instrumentos, o submarino russo emergira distante uns setenta metros, porém, dado o sigilo daquela operação, qualquer comunicação por rádio estava excluída. Nenhum dos envolvidos podia se arriscar a ser detectado.

O homem aguardou com paciência. Sabia que os visitantes esquadrinhavam a região à procura de barcos patrulha ou submarinos da Marinha Brasileira. Não demorou, contudo, para que logo avistasse breves sinais luminosos. Diretamente à frente, o submarino piscava luzes, conforme o código internacional marítimo, solicitando que a traineira se aproximasse.

A palavra de ordem foi dada, e a embarcação manejou de imediato e, em pouco tempo, se postou paralelo ao submarino. Amarras foram jogadas, prontamente recolhidas e fixadas, prendendo-a firmemente ao gigante negro, que flutuava no oceano, encoberto pela noite.

Concluída o estágio de acoplamento, os estrangeiros não perderam tempo, iniciando uma atividade febril. Compostos em sua maioria por ex-soldados das Forças Soviéticas, alguns mercenários e, mesmo, civis, todos trabalhavam para a Máfia Russa. Em instantes, um potente guindaste já se encontrava preso e instalado na parte superior do submarino, junto à popa. Em seguida, um compartimento foi aberto e um estreito elevador trouxe um contêiner de proporções médias à superfície. Os marinheiros atrelaram com cuidado a carga ao guindaste para, em seguida, iniciaram a transferência do volume para a traineira.

Em nenhum momento qualquer palavra foi trocada. Os marujos trabalhavam rápidos e em silêncio. O comandante da traineira observava a operação, junto ao convés, assim como também o fazia outro homem, do alto da torre do submersível. Possivelmente, um oficial da antiga Marinha de Guerra Soviética, pensou o homem com o binóculo. Embora não soubesse por que, não acreditava se tratar do capitão. Era mais que previsível que este se resguardava no interior do submarino.

Apesar da aparente serenidade, um detalhe não lhe passou despercebido. De modo insistente, o homem no alto da torre mirava constantemente o relógio ao pulso, como se cronometrasse a manobra. Assim como todos ali, era transparente de que queria deixar aquele lugar o quanto antes.

A operação toda durou pouco mais de quarenta minutos, mas enfim, a preciosa carga se encontrava a bordo da traineira e firmemente ancorada.

De súbito, o silêncio foi quebrado, com o oficial na torre passando a gritar e acenar, chamando seus homens de volta.

O comandante da traineira não compreendia o idioma russo, mas pode notar o tom de urgência na voz do oficial, e logo lhe descobriu o motivo, tratando ele mesmo de cortar as amarras e de se afastar do submarino a toda força. Não tinha dúvidas de que, se necessário, a embarcação russa o arrastaria junto, mas apesar da ameaça que corria, entendia súbita pressa do oficial. Em seus próprios instrumentos, era nítida a repentina presença de outro submarino aproximando-se em velocidade e adentrando à área.

Antes de se deslocar àquela região, o homem se inteirara sobre o patrulhamento da costa por embarcações da Marinha Brasileira. Por suas informações, o submarino detectado pelo sonar deveria ser o S-30 TUPI ou o S-31 TAMOIO, mas enfim, tal detalhe não importava em si. Àquela distância, era pouco provável de que seu barco chamasse a atenção, ainda mais com um peixe bem maior, submergindo e se afastando a toda velocidade. Como lhe confirmando as expectativas, o sonar mostrou o submarino brasileiro alterando a rota e colocando-se em perseguição à embarcação russa. Duvidava que a alcançasse. A belonave russa, apesar de antiga, era um submarino nuclear muito mais veloz e, em breve, se encontraria em segurança nas profundezas de águas internacionais.

O homem sorriu largo, desta feita com satisfação, e ergueu os olhos aos céus. Apesar dos riscos que a operação envolvera, a bênção d’Ele lhe fora favorável.

O raio e o trovão se encontravam a bordo. Agora ele dispunha da luz e da palavra.

****

O coronel Campos despertou pelo som contínuo da linha de alta prioridade. A mensagem fora lacônica e informava sobre um incidente em águas territoriais, a presença de um submarino não identificado, cujos pelos dados, possivelmente, apontavam para origem russa. O informe terminava dizendo que o desconhecido rapidamente rumara para águas internacionais e que todo o tempo se mantivera fora do alcance de interceptação.

Campos não voltou a dormir. Permaneceu deitado por um momento, levantando-se em seguida. Na mente, mil fatos se conectavam, mostrando-lhe paralelos e possibilidades, desenhando uma tenebrosa e quase impossível simetria. Os receios, que haviam crescidos nos últimos meses, pareciam se confirmar da maneira mais negra possível.

****

A reunião fora convocada ainda pela madrugada, marcada para as primeiras horas daquela manhã.

– Café, coronel?

– Obrigado, Júlio – agradeceu, sorvendo um bom gole do café recém feito. – Muito bom, estava precisando disto.

– Noite ruim?

– Como se você não soubesse... – respondeu o coronel, conformando-se com o cansaço que compartilharia pelo resto do dia. Aquele seria um dia duro para todos da Logística.

Sorveu outro gole de café, depositou a caneca sobre a mesa de reuniões e, por fim, se voltou para o agente Francisco.

– Pois bem, vamos começar. Repasse o que temos até agora, Francisco.

O agente apanhou um dos vários dossiês espalhados por sobre a mesa.

– João Cândido Renan. Sem referências profissionais. Filho único, pais religiosos dedicados. Até onde sabemos, foi educado e sempre viveu para pregar sua religião. A família possuía terras nos arredores de Araçatuba e cidades próximas. Reconhecidamente próspera, vivia do comércio entre produtores da região. Os pais morreram quando ele tinha a idade de vinte anos. Herdeiro único, vendeu tudo e criou a Igreja da Luz e da Revelação e, a seguir, mudou-se para o Timor Leste. Acredita-se que tenha estado peregrinado e pregando por lá, além de outros países da África, durante os últimos anos, embora sejam poucas as referências. Um advogado, ligado à família e posteriormente à igreja, cuidava da administração de seus bens.

– Ou seja, – interrompeu Campos – mesmo não sendo um milionário, dinheiro não lhe faltava.

– Mesmo assim, – prosseguiu Francisco – parece que levou uma vida bastante simples e abnegada, enquanto esteve fora do país. Também não foram encontrados sinais de que tenha desenvolvido quaisquer atividades ilegais, belicosas ou atos de violência. Somente após seu retorno ao Brasil, a Igreja da Luz e da Revelação passou a crescer de modo significativo.

O coronel olhou firme para o agente, apertando os lábios.

– E isso me preocupa mais ainda. Seja de que maneira tenha sido, agora o senhor Renan não só tem uma considerável fonte de renda à disposição, advindo de um sem número de donativos, coletados em todos os cantos do país, bem como, parece ter algum objetivo bastante definido.

O coronel puxou o dossiê para si, olhando por um momento a foto de João Cândido Renan.

– Vai saber o que se passou com ele, após todos esses anos, naquelas regiões miseráveis por onde andou – ponderou, deixando a questão no ar. – E se sofreu alguma decepção com a fé? Ou o contrário, ela se reforçou ao extremo por qualquer motivo? Ele pode ter se tornado um fanático ou, quem sabe, tenha enlouquecido. O que se pode esperar de uma pessoa assim?

O silêncio permeava a sala. Não havia respostas àquelas colocações.

– A questão é que não me parece que a Igreja da Luz e da Revelação tenha a intenção de realizar apenas boas ações por aqui – prosseguiu o coronel. – Primeiro, tivemos àquela apreensão dos Kalashnikov. Foram duzentos fuzis AK-47. Tudo indicava que eram destinados ao narcotráfico, mas aí houve a identificação positiva de um dos membros da tal igreja, José Marcindo Gomes, – disse, consultando o dossiê – envolvido com a transação. As apurações não foram conclusivas, mas não se afastou a suspeita de que ele possuía relações com o alto escalão da igreja e, mesmo, diretamente com Renan. Alguns dias depois, o envolvido morre em um assalto, à porta de casa, algo bastante comum, mas bem conveniente.

Campos se levantou e se dirigiu a uma das janelas. Do lado de fora, um belo gramado que se estendia ao longe, com alguns outros prédios à distância, dava-lhe a impressão de que se encontrava em um campus universitário.

– Em sequência, Renan iniciou uma série de pregações, atraindo cada vez mais pessoas, conseguindo penetração em todas as classes sociais, passando a ser uma figura conhecida, com algum destaque nos meios de comunicação. Obviamente, não passou despercebido, em seus cada vez mais inflamados discursos, os termos “pecador”, “punição” e “sem clemência”, repetidos à exaustão. E quase sempre juntos e nessa ordem.

O coronel se deteve, olhando para lugar algum, como com os pensamentos longe dali, retornando à mesa, após um tempo.

– E finalmente, chegamos na... – Campos puxou o dossiê para si, outra vez, e o folheou até encontrar a referência procurava. – Ah, sim, aqui está. Chegamos à “Passeata pela Palavra”!

O coronel atirou a pasta com o dossiê em cima da mesa. Sua frustração e impaciência com aquela situação eram nítidas.

– Um belo nome de efeito. E todos sabemos muito bem a que isso levou.

– Distúrbios quase incontrolados por diversas cidades do país – completou Francisco. – Em alguns pontos, a coisa ficou tão exaltada e séria, que chegaram a acontecer confrontos com a polícia, com várias pessoas tomadas como reféns.

– Exatamente. E mais uma vez, quando os envolvidos foram detidos, se fez apreensão de armas, todas de origem soviéticas.

– Mas como da vez anterior, não se conseguiu nenhuma associação com a cúpula da igreja – comentou o terceiro homem, mais ao fundo da sala.

– Sei bem disso, Júlio... – respondeu o coronel, um tanto distante e deixando transparecer o cansaço – ...sei muito bem disso.

– Por fim, – prosseguiu Francisco, após um tempo – tivemos o incidente na costa, nesta madrugada. Embora não tenhamos nenhuma indicação de qualquer ligação do incidente com Renan, há fortes indícios de que era um submarino russo, o que pode ou não ser uma coincidência. A questão é: o que ele fazia aqui?

– A questão não é essa, Francisco, a questão é outra – ponderou o coronel, em tom grave e preocupado. – O que ele fazia aqui todos nós sabemos. Não somos alvos militares da Rússia, ainda mais sem todo o antigo poderio soviético à disposição. Com certeza, eles gastam seus recursos, agora bem mais escassos, com seus antigos inimigos, mesmo que entre eles, e para o mundo, se tratem com sorrisos e apertos de mãos. Não, esse submarino fazia o que muitos outros fazem, a serviço da Máfia Russa. Ele fazia uma entrega, e aí chegamos à questão. E a questão é: o que foi entregue e quem a recebeu?


****

Dezenove horas antes.

República da Kaquislovênia, antiga União Soviética.

A base militar aparentava abandono, castigada pela neve e por uma temperatura de trinta e cinco graus abaixo de zero, muito embora, poucos desconfiassem que as temperaturas naquela região costumavam chegar próximas ao dobro, no rigor do inverno continental.

Muitos metros abaixo da superfície, aparentemente deserta, um telefone tocou. O major Mikhail Ilyanovsk atendeu de pronto, como se já esperasse a ligação.

– Sim, temos a confirmação, o depósito foi feito. Pode despachar a mercadoria. A propósito, esse cliente tem dificuldades em receber esse tipo de artigo em terra, portanto, a entrega será feita no mar.

Ilyanovsk aguardou os comentários do outro lado da linha.

– Está bem, está bem, não se preocupe! O velho SSBN – PIOTR VELIKI dará conta do recado. Apenas lembre-se de que estaremos em águas territoriais, e a única coisa de que não precisamos é de um incidente internacional, sem dizer, é claro, um cliente descontente. Isso seria péssimo para os negócios.

O major Ilyanovsk aguardou uma vez mais.

– Não importa, Demitri! O que importa é que ele pagou setenta milhões de dólares, os quais já estão em nossa conta! O quê? Sim, fiz um desconto, afinal, ele levou duas – respondeu, rindo a valer. – E não foi isso o que aprendemos com o capitalismo? Escoar os produtos e girar os estoques? E daí se eles pechincham? Deixe pechinchar! Damos um desconto aqui, pedimos mais caro ali, e assim todos ficamos contentes. É bom para os negócios, o cliente fica feliz e eu fico feliz, Demitri. E quando eu fico feliz, todos ficamos felizes, isto é capitalismo, Demitri. Afinal, os americanos tinham que servir para alguma coisa, não?

O major fez uma nova pausa.

– Esqueça o coronel Stolichnov, ele ainda pensa em termos do Partido e glórias passadas. Os tempos mudaram, Demitri, e nós mudamos com ele. Relaxe e aproveite a vida, deixe que os outros se matem, agora. Não estamos mais nesse jogo. Agora somos negociantes, respeitáveis homens de negócios, e contribuímos para a iniciativa privada.

O major Ilyanovsk sorriu e desligou. Ele estava satisfeito. Os negócios prosperavam e as demandas aumentavam. E mais ainda, não era todo dia que recebia um pedido de seu artigo mais caro, e dois de uma única vez.

Apenas uma coisa o deixava curioso em relação àquela venda. Não conseguia imaginar o que um brasileiro, um povo distante das tensões mundiais, pudesse querer com duas ogivas nucleares de quinze quilotons cada uma.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

O PORTADOR DA LUZ - Parte 7


Poucos meses depois. Sede da Logística.

O coronel Campos observou as fotos detalhadamente. A face fechada denotava a crescente preocupação. A reunião se estendia sem previsão de fim, já há muito avançando nas horas mais altas da noite.

Os recentes distúrbios vividos em todo o país, consequência da Passeata pela Palavra, em nada resultara contra a Igreja da Luz e da Revelação ou seu mentor, João Cândido Renan. Campos sentia que a cúpula da igreja se encontrava envolvida até o pescoço, mas não tinha como prová-lo. As diversas prisões efetuadas não trouxeram nenhuma ligação direta com a cúpula. E quando questionado, Renan fez uma declaração de efeito na imprensa, não só afirmando que não podia ser responsabilizado por atitudes extremas e isoladas de alguns cidadãos indignados com as afrontas morais e o afastamento dos mandamentos d’Ele, que os tempos atuais viviam, bem como, em um verdadeiro discurso de fé, culpou as autoridades responsáveis pela segurança pública, mostrando, inclusive, documentos que comprovavam a solicitação de reforço no policiamento, revertendo a indignação popular, fazendo-a se voltar para as autoridades.

O coronel atirou as fotos por sobre a mesa e, por um momento, apertou a base do nariz. Ele se sentia cansado, bem como todos ali, e a tensão apenas crescera naqueles meses.

– O que levantamos em relação a esta nova incógnita, nessa história? – questionou o coronel, voltando-se para o agente Júlio, após um tempo.

– Moisés Mendes Filho – reportou, pegando um dossiê específico, marcado em destaque. – De um ilustre desconhecido, possivelmente um auxiliar em trabalhos secundários, subitamente passou a aparecer, como se sua importância aumentasse significativamente dentro do grupo. Esteve ao lado de Renan em todos os discursos, nesses últimos meses. Suas aparições também se intensificaram junto aos seguidores. Nas últimas semanas, foi várias vezes referido como “aquele que iluminará as almas perdidas” e, em algumas outras, como “o punidor” ou mesmo, “o braço de Deus”. Após isso, desapareceu.

O coronel fitou o vazio, como se enxergasse através do agente.

– E, obviamente, não temos qualquer idéia de o por quê disso, nem da importância desse indivíduo dentro da igreja, certo?

Júlio se retraiu instintivamente àquelas palavras, mas sabia que o coronel não as dissera em tom jocoso ou menosprezando seu trabalho. Elas apenas refletiam a frustração de todos ali, com o desenrolar dos acontecimentos até aquela data. João Cândido Renan tramava alguma coisa, e tramava muito bem, mas até então, não haviam conseguido expô-lo em nenhuma ocasião.

– Não, senhor, não temos – respondeu o agente, por fim.

– Tudo bem, Júlio, esqueça o que falei. Sei que está fazendo o seu melhor; todos estamos. Mantenha o foco em Renan e em seus próximos passos. No mais, acione qualquer canal que for preciso; quero saber por onde anda esse tal de Moisés e qual sua relevância dento daquela igreja.


****

– Não, Moisés!

O grito o fez encolher. Por mais que tentasse evitar, lágrimas teimavam em lhe escorrer pelos olhos.

– D-d-desculpa...

A vara desceu rápida e com força sobre as costas do rapaz, fazendo-o se retrair de dor. Ele estreitou os olhos e se encolheu ainda mais, apertando os lábios para não gritar.

– Eu não quero desculpas! Você acha que Ele as quer? Está enganado, se pensa assim; Ele não aceita desculpas!

– S-s-sim... s-senhor... – balbuciou, às lágrimas.

Quase como em um gesto ensaiado, o homem deixou o corretivo de lado e abraçou o rapaz, ajoelhado à sua frente.

– Moisés, Moisés – disse, transparecendo ternura e abrandando a voz de instantes. – Você não percebe? Você tem de ser forte. Só os fortes são conclamados a ser o braço d’Ele, a mão que castiga!

O jovem ergueu a cabeça, piscando várias vezes para se libertar das lágrimas, e esboçou um sorriso tímido.

– Você quer castigá-los, não? A todos eles, os pecadores que maculam o mundo? Aqueles que transformaram nossa santa terra... nisso! – completou, deixando transparecer desprezo e nojo na voz.

Como o bote de um animal predador, o homem agarrou a cabeça do rapaz com violência, fazendo-o encará-lo.

– Você quer, não quer? Poderei contar com você, não poderei? Com seu sacrifício, sua dedicação, não poderei?

– S-sim senhor, o-o... senhor p-poderá – respondeu, em voz baixa.

– Não ouvi, Moisés! – disse o homem, elevando o tom. – Eu não ouvi! É assim que você espera que Ele o ouça? Com lamúrias e choramingo? Com a voz dos fracos?

– N-não! – respondeu o rapaz, apressado e com mais afinco.

– Então diga, Moisés, diga alto e claro, para que até os cantos mais distante do Paraíso o escutem!

– Sim, senhor! – disse, em voz alta. – Sim, senhor! O senhor poderá contar comigo! – repetiu, agora em tom ainda mais vibrante, as faces alteradas e decididas. Não havia mais lágrimas em seu rosto.

– Você irá levar a eles, Moisés? Irá levar a expiação ao coração dos incrédulos?

– Sim, eu irei!

– O raio e o trovão?

– O raio e o trovão! – repetiu com fervor e fé.

– Olhe-me nos olhos, Moisés; olhe em meus olhos! Você irá levar a luz e a palavra, a luz e a palavra?

Por uns segundos, o rapaz apenas ficou ali, estático, olhando para o homem que lhe prendia a cabeça entre as mãos.

– A luz e a palavra... – repetiu por fim, esboçando um sorrindo sereno, como se estivesse distante dali, certo de que, naquele momento, mil anjos o abençoavam.

****

Como sempre, o encontro ocorreu tarde da noite, na madrugada mais avançada. Até onde se lembrava, sempre havia sido daquela forma e, ainda assim, por mais tarde que saíssem dali, em nenhuma ocasião Renan se atrasara em seus compromissos matinais seguintes. Aquele homem pouco dormia, mas parecia não se importar com isso.

A sede central se mostrava enorme e solitária àquela hora, com os funcionários costumeiros e demais integrantes distante dali.

O advogado optou pelas escadas, como também sempre fazia. Não conseguiria explicar, mas se sentia incomodado dentro de um elevador em um prédio daquele porte onde, seguramente àquelas horas, apenas uma pessoa lá se encontrava.

Medos decorrentes da idade... – pensou, com certo ar de melancolia. Contudo, tudo mudou quando abriu a porta corta fogo e descortinou a entrada da única sala iluminada no andar.

O advogado avançou, soltando a porta de golpe. A força das molas a impulsionou de volta, e o ruído do choque contra o batente ressoou pelo corredor na penumbra. Por um momento, o advogado ficou imaginando porque Renan nunca mandara arrumar aquilo. Com o prédio vazio, o som devia reverberar por quase todo o edifício. Em seguida, balançou a cabeça e desistiu. Como tudo na vida de Renan, deveria existir um bom motivo, fosse qual fosse.

O advogado avançou e estancou à porta do recinto iluminado. Desta feita, Renan o aguardava voltado para a entrada e, com um assentimento, o fez entrar.

– Queria me ver, Ministro?

– Queria sim, Adalberto. Tenho uma missão da mais alta importância para você – disse, se virando e apanhando uma folha sobre a mesa, entregando-a ao advogado. Escrito à mão, constavam apenas um endereço e um nome. Não foi difícil, ao advogado, identificá-lo como uma localização em São Petersburgo, Rússia.

– Quero que você vá pessoalmente a este endereço e contate esse homem.

O advogado franziu a sobrancelhas.

– Não nos utilizaremos do intermédio de Casimiro? – perguntou.

– Desta vez, não. Este é um assunto de máxima prioridade e de absoluto sigilo, e só confio em você, Adalberto, para executá-lo.

O advogado assentiu com a cabeça.

– Considere feito, Ministro.

– Ótimo – respondeu Renan, dando-lhe as costas. – Agora vá. Providencie as despesas necessárias e, lembre-se, para a vontade d’Ele... não há preço.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

O PORTADOR DA LUZ - Parte 6


– ... o exército d’Ele está pronto e confiante, e a ti, pecador, a punição se abaterá sem clemência!

Francisco interrompeu a gravação com um gesto brusco e desligou a tv. Com aquela, já eram mais de uma dúzia de mídias repletas daqueles discursos, todos iguais em conteúdo, mas cada vez mais inflamados e diretos.

O agente se levantou e embalou a gravação. O coronel Campos fora bem claro, quanto a querer todas aquelas falas devidamente registradas. Renan, cada vez mais explícito, prometia punição aos pecadores, e esta era a questão que vinha lhe tirando o sono. Manifestar esse tipo de pensamento, com as palavras utilizadas, não consistia crime de incitamento à violência. Sempre havia a desculpa de sentido figurativo, além do fato de que pecadores é algo bastante genérico. Mas para Francisco, e o coronel concordava com isso, era exatamente aí que residia o perigo. De acordo com Renan, qualquer um poderia ser um pecador, e mesmo que de maneira pouco explícita, ele tomava para si, a questão de apontar quem eram os que cometiam os pecados, e isso poderia se tornar muito perigoso.

Ainda que lhe fosse impossível deixar as inquietações de lado, sentou-se à mesa e começou a redigir seu relatório.


****

O escritório encontrava-se quase às escuras, um gosto adquirido a alguns anos, em suas peregrinações. A penumbra o atraia e o acalmava, e mesmo, fazia-lhe fluir os pensamentos. Sentado em uma poltrona, de costas para a entrada, e observando lugar algum, em uma parede nua, o homem simplesmente aguardava.

Assim que o advogado de tantos anos abriu a porta, Renan acenou-lhe para que entrasse, sem ao menos se voltar. Não era necessário, sabia quem era o visitante. Àquela hora, ninguém mais apareceria por lá.

– Tudo concretizado? – perguntou, dirigindo o olhar, agora, às janelas e fitando a cidade do alto.

– Tudo realizado. O pessoal do Casimiro não quis arriscar e, desta vez, acobertou toda operação, com uma verdadeira rede de despistamento.

Renan emitiu um riso abafado.

– Eles são deveras eficientes, não?

– De fato, Ministro, de fato.

– Penso, então, que posso contar com nossos homens?

– Está correto. Temos os melhores do ramo em postos estratégicos, além de centenas que são totalmente dedicados à causa.

Renan se levantou e caminhou até as grandes divisórias de vidro. Cada vez mais, lhe fascinava observar a cidade à noite. A metrópole era tal como um grande animal selvagem, que serpenteava e se contorcia a todos os lados, todavia, já não tinha importância; sabia que lhe cabia domá-lo, lhe trazer ao arreio, amarrado e domesticado a seus pés, para quando, enfim, se curvariam aos pés d’Ele.

– Ótimo! A Passeata pela Palavra se realizará daqui a uma semana. Apesar do evento se concentrar na cidade do Rio de Janeiro, muitas outras capitais já se mostraram dispostas a promover evento semelhante e, mesmo, muitos municípios do interior de diversos estados. Como lhe disse, não duvide da força d’Ele. Ele está junto a nós, e tudo o que vem acontecendo, apesar do pequeno revés, só nos prova a verdade desta afirmação.

Renan contemplou o céu escuro.

– Reserve algumas armas e faça com que cheguem às mãos dos mais exaltados – disse após um tempo.

– Acha prudente, mesmo após o incidente da apreensão?

Finalmente, Renan se voltou para o advogado. Sua face expressava serenidade.

– Adalberto, não há com o que se preocupar. Alguns incidentes serão benéficos, para darmos uma amostra de quem somos. E quanto a nos ligarem a essas questões, ou mesmo a igreja, sempre podemos alegar que é impossível de se controlar uma multidão, ainda mais de cidadãos indignados com todas as afrontas à moral e bons costumes, e o afastamento dos mandamentos d’Ele. Todavia, reforce a solicitação de policiamento e apoio.

– Não creio que eles nos darão mais do que já deram.

– Pois é exatamente por aí! – exclamou Renan, esboçando um largo sorriso. – Estamos solicitando mais atenção, por partes das autoridades, preocupados em uma reunião de tais proporções. Obviamente, não nos darão ouvidos, e quando os incidentes ocorrerem, bem... creio que qualquer cidadão ficará indignado com tal atitude descabida, por parte dos responsáveis pela segurança pública.

O advogado assentiu com a cabeça.

– O senhor está certo, Ministro, como sempre.

– Eu não, Adalberto; Ele. Ele está certo sempre.

****


– ...e agora, voltamos ao vivo do Rio, com Márcia Callabro; boa noite, Márcia!

– Boa noite, Abelardo; boa noite, telespectadores. Continua dramática a situação aqui no Rio de Janeiro, bem como em diversas cidades brasileiras. Temos muitos feridos, um grande número de pessoas ilhadas pela multidão, refugiadas em bares e outros estabelecimentos, aqui no centro do Rio de Janeiro.

– Alguma vítima fatal, Márcia?

– Até o momento, de acordo com o Comando da Polícia Militar, não, Abelardo. Inclusive, há pouco, falei com o Capitão Tenório, encarregado do policiamento aqui do Rio, e ele nos garantiu que não há vítimas fatais, apesar dos abusos desmedidos que vêm ocorrendo.

– E Márcia, o Comando da Polícia já tem uma previsão de quando tudo se normalizará?

– Olha, Abelardo, conforme o informe que nos foi passado, há poucos minutos, a polícia espera debelar os manifestantes e liberar as pessoas ilhadas pela multidão nas próximas horas. Mas o que se vê por aqui é uma verdadeira massa de guerra. Os manifestantes mais inflamados já entraram em conflitos com os policiais, promovendo um verdadeiro quebra-quebra pelo caminho, tendo como principais alvos os bares e casas lotéricas, acusados de promover o jogo e a desordem. Alguns conhecidos pontos de prostituição também foram atacados, e uma clínica, suspeita de realizar abortos, foi completamente destruída pelos participantes da marcha. Incitadas pelas palavras de efeito de José Cândido Renan, conhecido como O Ministro, da Igreja da Luz e da Revelação, após uma pregação de mais de uma hora no Maracanã, onde a multidão de fieis estava reunida, a massa saiu em passeata, aos brados de dignidade moral e respeito à família e a religião. Porém, logo os policiais, designados para o acompanhamento da peregrinação, observaram o aumento da exaltação, por parte de vários integrantes e, em seguida, a violência tomou conta de transeuntes e frequentadores de bares, acusados de conspurcar a pureza e de compactuar com o Diabo e... atenção, Abelardo, neste momento está chegando a Tropa de Choque. Como podemos ver nestas imagens exclusivas, a Topa de Choque foi chamada e agora, está liberada para atuar.

– Você consegue alguma informação mais detalhada, Márcia?

– No momento, estamos sendo convidados a deixar o local e seguirmos para abrigos, mas vamos continuar por aqui, Abelardo, e a qualquer instante, voltaremos com novas informações. Do Rio de Janeiro, Márcia Callabro.

– E a qualquer momento, voltaremos do centro da cidade do Rio de Janeiro, com novas informações de Márcia Callabro. A direção da Igreja da Luz e da Revelação ainda não se manifestou a respeito dos tumultos, que estão ocorrendo em vários municípios pelo país. É você, Júlia.

– Obrigada, Abelardo. Complica situação com reféns, em Minas Gerais. A seguir, após nossos comerciais.

****

– E vamos, ao vivo, com Saulo Furlan, a Itajubéva, município de Minas Gerais, localizado pouco mais de quarenta quilômetros de Germinade. Boa noite, Saulo.

– Boa noite, Júlia. A situação aqui em Itajubéva se encontra em um impasse. Assim como em muitos municípios brasileiras, um grupo significativo de pessoas, que acompanhavam as imagens da pregação de João Cândido Renan, saíram em passeata, após a concentração deixar o Maracanã, no Rio de Janeiro. A princípio, estas pessoas contornariam as principais ruas da cidade e terminariam a passeata, apregoando cartazes e faixas. Contudo, há aproximadamente duas horas atrás, eles se depararam com a igreja local, e parte dessa multidão, os mais exaltados, por sinal, cercaram a igreja e acabaram por invadi-la, aos brados de vendidos e fiéis do Demônio, tomando como reféns o padre e alguns frequentadores. Pelo que se soube, tal fato se deve pela realização do bingo dominical, tido como um pecado extremo, por aqueles que condenam qualquer tipo de jogo.

– E qual a situação neste presente momento, Saulo? Você disse há pouco que havia um impasse.

– A situação é crítica, Júlia. Há pouco mais de meia hora, depois de várias negociações fracassadas, a polícia local tentou invadir a igreja, contida por manifestantes do lado de fora. Dezenas de pessoas foram presas, inclusive, temos a confirmação de apreensão de armas de fogo. Em retaliação, agora o grupo no interior da igreja ameaça atear fogo à construção, o que pode provocar uma verdadeira tragédia. O Corpo de Bombeiros já foi acionado, mas encontra dificuldades para chegar até o local, verdadeiramente tomado por centenas de pessoas, a esta altura. De Itajubéva, Minas Gerais, Saulo Furlan.

****

Dele era o fruto e dele seria a colheita.

O pensamento lhe ressoava prazeroso pela mente e lhe aquecia o corpo, esquecido e largado por sobre a cama, no quarto totalmente às escuras.

Sabia que se encontrava longe, mas podia jurar que ouvia os brados da multidão, a multidão que inflamara à suas palavras.

Talvez ouvisse.

E isso o engrandecia.

Aquela era a primavera que floria após o longo inverno. Sua palavra era poderosa e os que a escutavam, se revelavam empolgados, dignos a se ajoelharem perante Ele e, assim, cumprir-lhe os desígnios. Apesar de não serem totalmente inocente – quem o seria? – estavam prontos a responder ao chamado a que foram conclamados, com altivez e virtude, com força e submissão.

Submissão. Esta era a palavra que procurava.

Uma lágrima lhe aflorou aos olhos e, por mais incrível que fosse, transparecia felicidade.

Seu país, seu povo e, principalmente, os pecadores. Todos descobririam o significado de ser submisso a Ele.

Em breve, seriam resgatados do cativeiro do Mal, libertados do poder do inimigo. Muito em breve, todos os pecados seriam redimidos. Na luz da chama, no trovoar das palavras.

Nelson Magrini por Nelson Magrini:

Nelson Magrini é Engenheiro Mecânico, estudioso e pesquisador em Física, com ênfase em Mecânica Quântica e Cosmologia. Escritor, professor e consultor em Gestão
Empresarial e Cadeira Logística, além de Agente Literário, com serviços de Revisão Ortográfica e Gramatical, Preparação de texto (Copy Desk), Leitura Crítica e outros.


É autor de CEIFADORES – Anjo a face do mal II, ANJO A Face do Mal e Relâmpagos de Sangue (Novo Século Editora), de Os Guardiões do Tempo (Giz Editorial) e de ter participado das coletâneas Amor Vampiro, com o conto Isabella (Giz Editorial), e Anjos Rebeldes, com o conto Em Nome da Fé (Universo Editorial). Foi elaborador e colaborador do Fontes da Ficção.

nelson_magrini@yahoo.com.br