Qual o segredo guardado pelas tempestades, marcadas na lembrança daquelas pessoas?
TRECHO DE RELÂMPAGOS DE SANGUE
Sem nenhum aviso, uma garrafa de conhaque, logo acima de sua cabeça, explodiu em mil pedaços.
O homem mal teve tempo de se abaixar e se proteger, e não teve tempo algum de se preparar para o que se seguiu.
Aquele estouro, tal como o estopim de uma sequência de explosões armadas, desencadeou uma reação em cadeia. Uma a uma, as garrafas nas prateleiras começaram a trincar e explodir, fazendo voar, perigosamente, centenas de cacos de vidros em todas as direções.
Sem saída e sem saber o que fazer, o homem se atirou ao chão, atrás do balcão, abaixando-se e protegendo a cabeça, cobrindo-a com os braços.
O ruído agudo persistia cada vez mais alto e penetrante. Seus dentes titilavam e vibrava tal qual as garrafas, a ponto de lhe causar fortes dores. Um pequeno filete quente e pegajoso escorreu-lhe por ambos os lados do rosto, fazendo-o perceber que os ouvidos sangravam, assim como o nariz.
O homem queria gritar, mas quanto maior era-lhe a vontade, mais as palavras teimavam em não lhe sair, entaladas em sua garganta, sufocando-o e comprimindo-lhe os pulmões que, a esta altura, ardiam de ansiedade por oxigênio.
Subitamente, da mesma maneira inesperada como começara, o ruído cessou. E somente nessa hora, por sobre o repentino silêncio, o homem percebeu que gritava a pleno pulmões.
Ele se calou, assustado com os próprios berros. Agora, tudo era silêncio e somente o barulho da tempestade se fazia ouvir. Porém, ele não teve tempo para se recompor. Mal se erguera para espreitar por sobre o balcão, um novo ruído preencheu o lugar.
Mas não era como o anterior.
Desta feita, o som era mais grave, mais... sólido, contudo, tão profundo e incômodo como o de antes.
Completamente desorientado, o homem olhou para trás, como querendo se certificar de que as paredes continuavam no lugar ou, mesmo, se restara alguma garrafa inteira na prateleira de bebidas.
As poucas garrafas que se mantiveram intactas estavam caídas, e já não trepidavam mais. Porém, com o canto do olho, algo lhe chamou a atenção, algo que o deixou ainda mais apavorado.
Em cima do balcão, alguns talheres se mexiam, se movimentavam como que animados de vida, descrevendo círculos ou se movendo vagarosamente, se arrastando por sobre a superfície de madeira.
Para piorar a situação, ante a descrença nos olhos, alguns começaram a flutuar, dançando no ar. De um momento para o outro, todos os objetos metálicos começaram a flutuar pela lanchonete.
O homem apenas ficou ali, imóvel, a boca aberta, impossibilitado de acreditar no que via, lutando para manter a sanidade em um mundo que, subitamente, enlouquecera por completo. A dança dos objetos, que teimavam em desobedecer a gravidade, continuou por alguns instantes quando, sem o menor aviso, como se fios invisíveis que os sustentavam fossem cortados, despencaram, caindo ruidosamente ao chão. Um silêncio ainda mais angustiante se seguiu, outra vez apenas quebrado pelo som da chuva forte.
No entanto, também este momento de paz também teve curta duração. Novamente, sem um único indício, a lanchonete inteira começou a tremer e a vibrar violentamente.
A primeira coisa que lhe passou pela cabeça foi sair dali o mais rápido possível, mas antes que pudesse esboçar qualquer reação ou movimento, todo o ambiente se avermelhou, tingido de um rubro intenso e brilhante, como se os relâmpagos deflagrados um após o outro, insistentemente, tivessem todos mudados de cor de uma só vez.
Mas não era só; havia outra coisa ainda mais inquietante.
Aqueles relâmpagos eram incomuns não só pela cor, mas também no sentido de não serem fugaz, um simples lampejo luminoso de poucas frações de segundo. Diferente dos demais, pareciam durar uma eternidade.
A luz se intensificou mais vermelha e ofuscante.
Tudo voltara a vibrar à volta, fazendo-lhe os dentes baterem novamente uns contra os outros, só que agora com muito mais violência.
As janelas e as portas, fragilizadas pelos os anos, não resistiram. As vidraças estouraram, trazendo chuva e vento para dentro, fazendo-os se misturarem aos cacos de vidros que voavam por toda a lanchonete.
Em desespero, o homem se atirou ao chão e se encolheu atrás do balcão. Ele escondia a cabeça com as mãos, tentando se proteger o melhor possível, implorando para que aquele pesadelo acabasse, gritando para que aquilo tudo terminasse, gritando e gritando até não ter mais forças.
O vermelho do ambiente se intensificou ainda mais, como se uma maré de sangue invadisse o local. Mais ainda, era como se o sangue brilhasse, tal a magnitude da cor que tingia as paredes, chão ou qualquer coisa em que tocava.
Mais e mais a lanchonete sacudia e vibrava. O homem tinha a impressão de que a própria construção iria voar pelos ares, desgarrando-se dos alicerces e ascendendo aos céus.
O vermelho agora era de tal amplitude que penetrava até mesmo através das pequenas frestas das madeiras que compunham o balcão, irradiando a tudo com uma luz fantasmagórica, sangrenta e demoníaca.
Lágrimas lhe escorriam dos olhos, enquanto ele se apertava e se encolhia ainda mais contra o fundo do balcão, querendo refúgio, querendo se esconder e desaparecer dali de qualquer maneira.
Subitamente, o homem gelou. Seu coração quase parou quando percebeu, apesar do ruído da tempestade, que a porta da frente, ou o que restava dela, havia sido aberta.
Alguém havia entrado.
– M-Mirtes, é-é v-você? – perguntou hesitante, ainda agachado e tremendo, preso ao mais puro horror.
Não houve resposta.
Não era ela.