quarta-feira, 27 de julho de 2011

O PORTADOR DA LUZ - Parte 5


O ambiente era opressor, muito embora fosse apenas uma sala fechada e sem janelas, muito comum à maioria dos grandes prédios de escritórios. Ainda assim, para José Marcindo Gomes, parecia-lhe a antessala do Inferno. Sentado em uma cadeira, tendo à frente somente uma mesa vazia, ele tremia de nervosismo e ansiedade, quase de maneira descontrolada. Na mente, não lhe passava como teria sido possível tudo ter se precipitado da forma como ocorrera. Fora errado ter-se envolvido pessoalmente, sabia disso, mas sequer cogitava em questionar os desígnios de José Cândido Renan, ou melhor, o Ministro, como fazia questão de ser chamado.

Quando a porta se abriu às costas, nem se virou, pelo contrário, afundou o rosto, cobrindo-o com as mãos. Temia olhar as faces do homem que adentrara, temia-lhe os olhos e, mais ainda, suas palavras, mesmo as suaves, as de fé e de dignidade. Ainda que falasse sobre bondade e benevolência, aquela voz lhe transmitia medo desmesurado.

– Marcindo.

O tom com que fora proferido o nome, apesar de soar calmo e moderado, lhe penetrou os ouvidos como facas, rasgando e ferindo-lhe o cérebro. No instante seguinte, duas mãos pousaram-lhe nos ombros, fazendo-o estremecer.

– Meu bom Marcindo.

Ele fez uma tentativa vã de se voltar, mas aquelas mãos pressionaram-lhe com maior intensidade, deixando claro que deveria permanecer como estava, sem se virar. Gotas de suor porejavam-lhe à testa, seguidas de um gosto acre, que lhe subia à garganta. Só reprimiu a ânsia à custa de muito esforço.

– Não se preocupe – disse a voz branda, como lhe adivinhando os pensamentos. – Se esta era a vontade d’Ele, não há porque se preocupar, está tudo bem. Todos nós erramos, e foi apenas isso o que aconteceu, você errou e errar é do homem.

– M-ministro, eu...

– Shiiii... não é necessário dizer coisa alguma, estou ciente.

Marcindo balançou a cabeça, quase frenético, concordando.

O homem às costas aproximou-lhe o rosto, falando-lhe junto ao ouvido.

– Você pode ir, eu o perdoo. Você apenas não deve falar nada sobre nossos contatos.

– M-ministro, a polícia... eles querem...

– Sei bem o que querem, Marcindo, e não haverá problema algum. Jamais deixaria um dos nossos ao alcance das feras, nunca abandonaria qualquer um às sombras, que se infiltram nos corações dos homens. Nosso corpo jurídico já se encontra tomando providências para que todas as acusações sejam retiradas.

– Ministro, eu n-não sei como agradecer e...

– Esqueça... isto é o mínimo que posso fazer por alguém tão dedicado e que sempre colocou a Luz e a Verdade acima de tudo. Contudo, para que o Mal não prevaleça, preciso uma vez mais de sua ajuda, seus préstimos. Ninguém deve saber que nos conhecemos, além de possíveis encontros casuais em nossos cultos. Percebe como tal seria perigoso? Pode fazer isso por mim, Marcindo? Por Ele?

– P-posso, Ministro, p-posso! Qualquer coisa que pedir, eu juro... eu...

– Não há necessidade de juramento, meu bom homem, sua palavra me basta, é a maior garantia que alguém pode dar. Agora vá, descanse um pouco e manhã ou depois, quando achar conveniente, retome suas atividades. Assim como Ele perdoa, também sei perdoar, afinal, esta não é a nossa maior graça?

– S-sim, Ministro, o senhor tem razão, como sempre. Abençoada seja a sua visão privilegiada! Muito obrigado por sua compreensão... muito obrigado!

– Não agradeça a mim, Marcindo, sou apenas um humilde homem fazendo o trabalho a mim designado. Agradeça a Ele e a graça que lhe foi concedida.

O homem lhe soltou os ombros e se afastou. Marcindo se levantou, atrevendo-se a olhá-lo, porém o homem permaneceu estático, claramente com os olhos voltados à outra direção, deixando claro que, apesar das palavras ditas,  não se dignaria a se voltar a ele. Marcindo murmurou mais um obrigado, repetido algumas vezes, e se despediu, tão baixo que sua voz era quase inaudível, deixando a sala em seguida.

Renan permaneceu imóvel por uns minutos, sinalizando em seguida a outra pessoa, que se postara à porta, seu advogado pessoal.

– A informação foi passada? – questionou com voz fria, sem se virar, como se falasse para as paredes nuas à frente.

– Está tudo certo – confirmou o advogado, com um leve aceno de cabeça. – Eles cuidarão dele.

– Ótimo – respondeu, de modo seco. – E quanto ao fornecimento, ainda é confiável?

– Sem dúvida, desde que agora tratemos pessoalmente com eles. Continuam interessados, porém, depois do ocorrido, só aceitarão se tratarem diretamente com a cúpula.

As faces de Renan se endureceram, pensativo, mas apenas por poucos instantes.

– Tudo bem. Se formos cautelosos, isso não será importante. Em breve, chegaremos à parte mais delicada e precisaremos contar com o apoio deles. Desenvolver outro fornecedor nos tomaria tempo por demais precioso.

Por fim, o Ministro se voltou para o advogado.

– Você deverá tratar de tudo, pessoalmente. Só posso confiar em você para o que vem à frente.

– Assim será feito, Ministro – confirmou o advogado e saiu.

Sozinho na sala vazia, o homem ficou mais um bom tempo estático, simplesmente olhando para lugar algum. Contudo, não eram paredes vazias que ele enxergava, era o futuro. A Luz e a Palavra; o Raio e o Trovão.
 
****
 
Marcindo saíra pelos fundos e evitara a imprensa, conforme lhe fora orientado. Livre desse assédio, dirigiu-se à sua residência, em um bairro tranquilo e afastado. Contudo, não chegou a entrar em casa, mal vendo o estranho se aproximar. Os dois disparos a queima-roupa o jogaram contra a porta, desabando sem vida, em seguida. O desconhecido tomou-lhe o celular e a carteira, para forjar um assalto, pulando pelo muro e sumindo na rua.

O recado fora claro; Casimiro não admitia falhas.
 
****
 
Duas semanas depois.

A Logística levantara toda e qualquer informação sobre a Igreja da Luz e da Revelação, assim como sobre seu fundador, João Cândido Renan. Apesar disso, não achara nenhum indício que os ligassem ao contrabando de armas ou a qualquer contato com Casimiro.

Nesse meio tempo, o envolvido direto no incidente havia sido morto, em uma possível tentativa de assalto, à porta de casa, algo bastante comum naqueles dias, mas também, bastante conveniente. Apesar de participar do médio escalão da igreja, não fora possível associar Marcindo a Renan em nenhuma ocasião, tendo o corpo jurídico da igreja se manifestado que aquele havia sido um ato isolado de uma pessoa desesperada, despreparada e de pouca fé, tendo se deixado sucumbir ante a vontade do Mal e das sombras, e que a entidade lamentava muito o ocorrido, envolvendo um de seus seguidores.

Contudo, os fatos continuavam a se alastrar.

O coronel Campos ficou olhando a tv, muito embora não se detivesse às imagens. Os pensamentos se atropelavam, procurando dar algum sentido a tudo aquilo. As chamadas havia se iniciado há poucos dias e, agora, Renan em pessoa passava a aparecer na mídia televisiva, primeiramente destacando aquilo que chamava de “Passeata pela Palavra”, um ato público de fé, que se iniciaria com a reunião de fiéis no Maracanã, em um domingo, dali a pouco mais de um mês. Ao mesmo tempo em que Renan procurava divulgar e despertar o interesse das pessoas, seus advogados trabalhavam para obter as autorizações necessárias. Após a reunião, o culto pretendia realizar uma passeata simbólica pelos direitos de protestar contra os maus costumes, que cada vez mais, nas palavras deles, infestavam e dominavam o país em todos os escalões sociais.

Um dos pontos de preocupação de Campos era relativo à adesão de várias personalidades da sociedade, fossem políticos de renome ou artistas de destaque. Em curto espaço de tempo, a despeito das notícias sobre a apreensão de armas e o envolvimento de um de seus funcionários, a Igreja da Luz e da Revelação ganhava influência e prestígio, e com isso, poder.

Ele não gostava daquilo. Algo se achava de muito errado, o instinto lhe dizia. No entanto, apesar de toda malha fina de investigação, seus homens apenas descobriram a intenção de Renan de passar a apresentar, a partir dos próximos dias, sermões diários, voltados aos fiéis. Em outras palavras, nada de novo em relação à pregação que já ocorria, de maneira desmedida, nos meios televisivos.

O coronel desligou a tv e se recostou. Por hora, havia pouco a fazer. Teria de se contentar em ouvir o que aquele homem pretendia dizer.
 
****
 
– ...e haverão de temer os pecadores, que não se fartarão à punição sem clemência, pois é isso que nos ensina a palavra. Então, aqueles que honram a herança e o saber, a bondade e a misericórdia, também honraram as horas difíceis e de provação, mas com Ele no coração, nada mais serão que apenas uma fagulha de menor importância, no seio da harmonia infinita que haverá de se seguir!

O homem se calou por um breve instante, em uma pausa ensaiada, para dar mais peso e intensidade às frases proferidas. E após algum tempo de silêncio, finalizou de maneira dramática.

– E por fim, vos pergunto, a mesma questão de há milênios: se Ele está comigo, quem estará contra mim?

****
 
O quarto de hotel era luxuoso, mas não ao extremo, exatamente aquilo que caberia a uma representante de uma industria estrangeira, em negócios no país.

A jovem, registrada sob o nome de Tatiana Michalovna, desligou a tv, intrigada sobre o discurso que acabara de ouvir. Aquele homem lhe era estranho, pregava amor e misericórdia ao mesmo tempo em que conclamava a punição e inclemência. No fundo, não via diferença entre outros tantos fanáticos, muito embora, algo naquele olhar lhe inspirava desconfiança e cuidados. Fosse como fosse, aquela não era uma de suas preocupações. O contato de Casimiro confirmara o pedido de dez mil Kalashnikov AK-47, com quarenta mil pentes extras, o que daria quatro reservas para cada arma.

Contudo, o que mais saltava aos olhos, destoando pelo fato de ser inusitado, eram vinte mil modernas pistolas Tocarev TS, que dispensavam a utilização de silenciadores e ainda assim, quase perfeitamente silenciosas. Fruto de um desenvolvimento recente de alta tecnologia, a potência permitia-lhe transpassar sem dificuldade um capacete de kevlar ou uma placa de aço de dois milímetros de espessura, a uma distância de vinte e cinco metros, sem comprometer-lhe a capacidade de impacto. Seu uso era exclusivo das SPETSNAZ (SPETSialnogo NAZnacheniya - Unidade de Operações Especiais) ou da SVR, Sluzhba Vneshnej Razvedki, o equivalente russo da CIA.

A jovem apertou os lábios. Aquele homem, um líder das muitas seitas que de desenvolviam naquele país, estava se armando de modo superior a qualquer traficante e, mesmo, a muitas guerrilhas ou pequenos exércitos. Não imaginava o que ele poderia ter em mente. Talvez, uma verdadeira revolução armada. No entanto, deixou os questionamentos de lado, não se encontrava ali para isso. O pedido fora confirmado e era hora de contactar Moscou.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

O PORTADOR DA LUZ - Parte 4


Rio de Janeiro, cais do porto, por volta das duas horas da madrugada.

A noite estrelada e sem Lua proporcionava uma escuridão ainda mais plena. Sem maiores reflexos nas águas, o negrume avançava de tal maneira que o horizonte parecia inexistir, quase se confundindo com o céu, delimitado apenas por uma extensa faixa de minúsculos pontos brilhantes, centenas de estrelas situadas à altura dos olhos. Para aqueles acostumados às grandes metrópoles, ou que viviam longe do mar, tal visão simplesmente impressionava.

A embarcação se encontrava ancorada em um ponto mais afastado e de menor movimento do porto. Quatro homens e uma mulher aguardavam, já a uns vinte minutos, quando finalmente os faróis de uma espaçosa van iluminaram a noite.

– Já não era sem tempo – bufou Carniça, contrariado, sinalizando para que dois dos homens tomassem posição mais à frente, rodeando o veículo.

– Só três guardas? Não é pouco para uma operação como esta? – questionou o homem nervoso, mal desceu do carro.

– É o suficiente – foi a resposta taxativa. – O seu Casimiro não gosta de chamar atenção. Quanto mais gente, mais aparece.

– Está tudo aí? – perguntou ansioso, desviando o olhar para uma série de engradados.

– Está tudo aqui. Vamos carregar e cair fora – confirmou Carniça, acenando para os homens iniciarem o carregamento. – Enquanto isso, quero lhe apresentar nosso... contato de importação, por assim dizer, – disse, apontando para a jovem ao lado, com um sorriso  sarcástico – apenas para que tenha certeza de que as demais encomendas estarão garantidas, como prometemos.

Carniça fez menção de se virar e chegou a abrir a boca. No entanto, não disse mais qualquer palavra. De súbito, inúmeros holofotes poderosos se acenderam, ao mesmo tempo em que dezenas de máquinas fotográficas de precisão disparavam.

Através de um megafone, uma voz estridente se fez ouvir.

– Polícia Federal! Todos parados! Afastem-se do barco e larguem as armas!

– Você não disse que ele havia sido investigado? – perguntou a mulher, por entre os dentes, se refazendo de imediato da surpresa. Naqueles segundos de tensão, ninguém notara sua reação de elevar a mão e cobrir parcialmente o rosto, assim que as luzes se acenderam.

– E foi! – gritou Carniça em resposta, agarrando o homem pelo colarinho.

– N-não... eu n-não tenho nada com isso! – balbuciou. – Só quero a encomenda e...

– Cala a boca! – gritou-lhe o contrabandista de armas, empurrando o homem contra a própria van. – Samuel, manda chumbo nesses caras, vamos cair fora daqui!

Os dois indivíduos mais à frente nem precisaram aguardar a ordem. Um olhar de Samuel foi o suficiente para que mostrassem as armas, um par de submetralhadoras Ingram MAC10, de origem norte-americana, com capacidade de mil e cem disparos por minutos. Em segundos, o Inferno se fez vivo, e qualquer um compreendeu o porquê de tão poucas pessoas para guardar aquela operação. Armas como aquelas compensavam em muito o número de homens.

– Para o barco! – gritou Carniça, enquanto ele mesmo disparava em leque, abrangendo várias direções de uma vez só. – Vamos cair fora daqui!

Perdido em meio ao tiroteio, o homem da van tentou chegar à embarcação, sendo detido por Carniça no último instante, que o empurrou para fora.

– Você, não! Você fica e explica pros federais o que estava fazendo. Depois acertamos as contas!

– M-mas eu não sei... n-não me deixem... e-eu... – tentou articular, caindo com um baque seco contra o veículo.

Os dois outros homens mantinham fogo cerrado, cobrindo a retaguarda e fuga, enquanto o barco se colocava em movimento e se afastava a alta velocidade.

– Pega a van, Zé, vamos dar o fora daqui – disse um deles. No entanto, um disparo certeiro o colocou fora de combate.

Vendo o companheiro tombar, o outro passou a disparar e a gritar como louco, cometendo o descuido de se expor. Em segundos, dezenas de disparos fizeram-lhe o corpo chocalhar e estremecer, até tombar, silenciando-lhe a arma.

Como se o súbito interromper dos disparos fosse um sinal, dezenas de homens deixaram suas posições e avançaram, armas em punho, prontas a disparar. Em segundos, cercaram a van e os homens caídos.

– Você aí, pro chão! Mãos na cabeça! – gritou um agente, todo de preto e com colete à prova de balas para o homem encolhido junto ao veículo.

Sem esboçar reação, a pele esbranquiçada como se o sangue lhe tivesse fugido, concordou com a cabeça, deitando-se e levando as mãos à nuca, apenas balbuciando frases incompreensíveis.

Poucos minutos depois, a situação se encontrava sob controle, e um homem trajando terno preto se aproximou. Embora a transferência da mercadoria havia sido frustrada e as armas apreendidas, o agente Francisco, da Logística, se achava contrariado.

– Merda! Avisamos que isso poderia acontecer!

– Bom, não podíamos colocar barcos-patrulha na área. Se tivéssemos feito, eles teriam percebido – justificou-se o encarregado da operação, um tanto contrariado por ter de se submeter a um ex-agente, desconhecido por ele. Todavia, fosse quem fosse aquele homem, ex-agente de campo ou um burocrata interno, tinha papéis que lhe garantiam autoridade absoluta.

– Sei disso, você não tem culpa – respondeu, dando vazão à frustração. – Apenas não me conformo como escaparam debaixo de nossos narizes.

– Aquelas submetralhadoras eram armas poderosas. Poucos homens conseguem deter quase um contingente, ao menos por um tempo.

– Tempo suficiente para os outros escaparem – respondeu Francisco, observando o mar negro que se abria à frente. Àquela altura, a embarcação já havia sumido de vista, sem a menor idéia de que rota tomara.

– Ao menos temos um prisioneiro e aprendemos as armas – comentou por fim, o agente federal.

Francisco não respondeu. De fato, o prisioneiro era uma figura central para esclarecer o ocorrido e, sendo quem era, os possíveis desdobramentos daquilo tudo. Apesar disso, sentia-se inquieto. Duzentos AK-47 não eram coisa pequena. Mesmo assim, algo lhe dizia ser aquilo apenas a ponta do iceberg.


****

Dez da manhã daquele dia. Sede da Logística, sala de reuniões.

A mesa grande era ocupada por apenas três homens, estando o coronel Campos à cabeceira. Embora rígida, as faces deixavam transparecer-lhe a insatisfação.

– E isso é tudo o que temos.

Campos observou o homem à frente por uns instantes.

– Francisco, – disse em tom quase professoral – você foi escolhido especialmente para chefiar esta investigação, pois sua folha de serviços é impecável, tanto em seus tempos de Forças Armadas, bem como o período em que passou pela Polícia Federal. E com todos esses méritos, você só tem isso para me dizer?

O agente passou a mão pelos cabelos que começavam a rarear prematuramente. O rosto se achava marcado pelo cansaço, não tendo descansando desde a apreensão na madrugada.

– Gostaria de poder dizer muito mais, coronel, mas existem incógnitas sobrando nesta história – comentou, fazendo uma pausa e exibindo uma foto de uma série que se encontravam espalhadas pela mesa. – José Marcindo Gomes, – continuou – preso junto ao carregamento de armas. Citado em duas ocasiões por informantes diferentes, que o ligaram ao contrabando e nos levaram às informações para montar a operação de apreensão. De início, acreditávamos que tais armas seriam destinadas ao narcotráfico, e foi quando este nome surgiu, sem qualquer histórico ligado ao crime organizado, saltando aos olhos apenas sua participação na Igreja da Luz e da Revelação, possivelmente uma de muitas seitas que surgiram nos últimos anos.

O coronel Campos apertou os lábios. Aquilo de fato saltava aos olhos, exatamente como seu agente falara. Se havia alguma coisa de incomum naquele caso, aquela era a informação.

– Gomes foi detido e agora se encontra na sede da Polícia Federal, junto a seus advogados. Há suspeita de que ele possua relações com o alto escalão dessa igreja, mas isso ainda não está claro, bem como o envolvimento de outros membros com o contrabando das armas.

– Julio – disse o coronel, voltando-se para o segundo agente presente – levante tudo sobre essa tal Igreja da Luz e da Revelação. Quero saber quem são, a quem respondem e principalmente, o que pretendem. Esta compra de armas pode ter sido uma ação isolada de um maluco, ou não – finalizou, retornando em seguida para o outro homem. – O que mais temos, Francisco?

– A estratégia de usarmos potentes holofotes e fotografarmos o flagrante foi um sucesso – respondeu, selecionando outras fotos. – O principal homem é este aqui – disse apontando – Jorival Tavares, conhecido como Carniça, uma espécie de gerente de Casimiro.

– O traficante de armas – comentou o coronel Campos, mais para si próprio.

– Exatamente – prosseguiu Francisco. – Jorge Casimiro de Abreu e Sá, conhecido traficante de armas, só trabalha com grandes negociações, muito embora, até hoje nada se conseguiu provar contra ele. É tido como um rico comerciante, importador e exportador, e tem por norma nunca se expor, o que parece ter funcionado estes anos todos.

– Há uns quatro anos houve um incidente, onde seu nome apareceu, não?

– Exatamente, coronel. Ao que tudo indica, ele se envolveu em um tiroteio, em circunstâncias pouco claras, com a polícia, mais precisamente com o tenente Rafael Eduardo de Barros, que comanda uma unidade experimental da Polícia Militar, a qual trabalha à paisana e procede a investigações. Na época, também se viu envolvido o principal assassino de Casimiro, Carllos Covallo, apelidado de Cavalo, brutal e sem escrúpulos.

– E esta jovem, quem é? – perguntou Campos, puxando um dos muitos flagrantes.

– Foi quem mais trabalho nos deu para identificar. É nítida a sequência onde ela leva a mão ao rosto, encobrindo-o parcialmente, assim que as luzes se acenderam, como se intuísse que fotos seriam batidas.

Campos assentiu com a cabeça, pensativo.

– Seu nome é Tatiana Michalovna – continuou Francisco. – Entrou no país, precedendo da Rússia, há pouco mais de um mês. Declarou-se em visita de negócios, funcionária das empresas Ukranivitch de maquinários industriais. Sua ficha na empresa bate com os dados fornecidos.

– E quem é ela de fato?

O agente Francisco não pode deixar de esboçar um sorriso pela perspicácia do coronel Campos.

– Depois de muito investigar e revirarmos quase todos os arquivos espalhados pelo mundo afora, alguns altamente codificados e secretos, descobrimos que seu verdadeiro nome é Pola Onatopp, nascida em São Petersburgo, Rússia, localizada às margens do rio Neva, na entrada do Golfo da Finlândia, Mar Báltico, em 1982, ou seja, possui apenas 26 anos, um tanto jovem para estar em uma posição de destaque em uma operação como aquela. Seu pai, Andrey Onatopp, foi agente da KGB, durante os anos de ferro, e estas são todas as informações disponíveis.

– Nada mais? – questionou o coronel, um tanto surpreendido.

– Nada, senhor. Até parece que esta mulher não tem passado.

– Talvez não queiram que saibamos de seu passado – ponderou o coronel. – São Petersburgo é conhecida hoje como a Capital do Crime, pela imprensa local. É uma cidade violenta, sede do chamado Sindicato do Crime ou Máfia Russa.

– Então ela deve ser o elo de ligação de Casimiro com os traficantes de armas russos – constatou o agente Júlio.

– Pode ser, mas como Francisco disse, ela é um tanto jovem demais para estar à frente de uma operação internacional deste porte – respondeu o coronel, inquieto e desconfiado.

– Alguma outra possibilidade, coronel?

– Ou o Júlio está certo, apesar da idade... – disse o coronel Campos, batendo com o dedo, interrogativo, em uma foto de Andrey Onatopp, anexada ao relatório – ...ou é uma das agentes de Nikolai Patrushev, chefe do FSB, Serviço Federal de Segurança, antiga KGB e atual Serviço Secreto Russo.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

O PORTADOR DA LUZ - Parte 3


Seis meses se passara, desde que assumira suas novas funções, porém, o coronel Campos nem tivera tempo para se dar conta. O termo Logística pegara em definitivo, sendo desse modo como o SBI era referenciado, mesmo em memorandos oficiais. Ele chegou a sorrir, lembrando de como toda uma linha de despistamento, evasivas e dissimulação se engendrara quase que automaticamente, desde que a Logística entrara em operações. Melhor assim, que continuassem pensando que o Brasil fosse somente o país do samba e futebol.

Contudo, o sorriso lhe desapareceu de imediato. Havia muito mais por detrás daquele palco conhecido. Era nos bastidores, mais propriamente nos subterrâneos, que os verdadeiros dramas se desenrolavam, ou melhor, que se desenrolavam os dramas que não chegavam ao conhecimento da população ou da imprensa e dos meios de comunicação.

Distraído, se deteve aos pensamentos. A situação lembrava-lhe alguns livros ou filmes de ficção, onde o mundo cotidiano seguia em sua vida normal, sem se dar conta da existência de fantasmas, vampiros ou todo um séquito de seres sobrenaturais, que atuavam escondidos nas sombras. Contudo, embora o pensamento o divertisse, o coronel não voltou a sorrir, desta feita. Para dizer a verdade, preferiria mil vezes que suas atuais considerações envolvessem fantasmas ou vampiros. Os desdobramentos certamente seriam de menor impacto.

O súbito toque do telefone o tirou dos devaneios. O coronel atendeu e ouviu por uns instantes, as feições se alterando, se tornando ainda mais rígidas.

– O mesmo nome, agora vindo através de outro informante? – questionou, arcando as sobrancelhas, de certa forma, surpreso. Contava com que a primeira informação tivesse sido errônea, mas agora, parecia ter os temores confirmados. – Encontre-o e o mantenha sob vigilância, não o perca em hipótese nenhuma. Não acredito em coincidências.

Campos desligou, o semblante preocupado. Sem se dar conta, questionava-se no íntimo se algum escritor de fantasia chegaria a cogitar e elaborar uma trama como a que se prenunciava. Em um pedaço de papel, escreveu Igreja da Luz e da Revelação. Instantes depois, anotou um nome e o sublinhou várias vezes.

****

Um mês antes do telefonema.

A súbita brisa suave contrastava com a noite quente, amenizando um pouco o calor, que imperara o dia todo. A danceteria, uma casa da moda e bastante badalada, se achava repleta, já havia horas, e ninguém desconfiava quem eram os verdadeiros proprietários ou a qual propósito servia.

Quase uma centena de pessoas se aglutinava ao lado externo, em uma fila interminável à porta, aguardando a vez de entrar, quando um luxuoso carro importado estacionou. A jovem, trajando um elegante vestido grafite, caído às costas de modo insinuante e generosamente aberto em uma das laterais, deixando exposta a coxa, desceu, sequer se voltando para os demais, ignorando a todos por completo. Quando chegou à porta, a entrada foi-lhe liberada de imediato, e com passos firmes e decididos, se dirigiu a um reservado, onde um homem, junto a uma mesa com algumas garotas, a aguardava.

– Está adiantada – comentou, em tom de cumprimento. – Fez boa viagem?

– Sempre faço – foi a resposta taciturna e lacônica.

A mulher observou o homem por uns minutos, em silêncio, aguardando que as companhias fossem dispensadas.

– Vão dançar um pouco, meninas, que tenho negócios a discutir – disse, com as garotas se levantando de pronto e deixando-o a sós com a recém chegada.

– Carniça... apelido curioso, o seu, até engraçado – comentou, denotando um sotaque pouco conhecido.

– Se você soubesse o que significa, boneca, não iria achar graça ou curiosidade alguma – respondeu o homem, com um sorriso cortado, que mais lembrava uma cicatriz. – Aceita uma bebida?

A jovem assentiu com a cabeça.

– Vodka pura... russa, por favor... dupla – completou após um instante, com Carniça acenando para o garçom mais próximo.

– Bem podia imaginar.

Em segundos, a garrafa envolta por uma capa de gelo foi trazida e uma generosa dose-dupla, servida.

A mulher tomou um gole, saboreando a bebida por um instante.

– Vamos aos fatos, o que Casimiro deseja desta vez? – perguntou por fim. – Espero que o suficiente para justificar minha vinda ao país.

– Pode ter certeza que sim, boneca. Você sabe que o seu Casimiro não brinca em serviço, e que só trabalha com coisa grande e gente fina, cheia da nota.

– Quão grande? – questionou, mantendo-se impassível.

– Grande. Só para começar, para o cliente sentir a mercadoria, são duzentos fuzis Kalashnikov AK-47. Se aprovado, e não duvido que irão aprovar, temos encomenda para mais dez mil.

– Dez mil? – perguntou, pela primeira vez, deixando transparecer um sorriso no canto da boca. – Interessante, os números começam a ficar expressivos.

– Foi o que eu disse, boneca. O seu Casimiro não pega peixe pequeno.

– Pressuponho que o cliente já tenha sido investigado. A última coisa de que precisamos é alguma surpresa de sua Polícia Federal ou de qualquer outro órgão. Algum chefão do tráfico?

– Não – respondeu, sorrindo e balançando a cabeça. – Você nunca imaginaria, boneca.

– Quem, então? – perguntou, enquanto sorvia mais um gole da vodka, saboreando-a antes de engolir.

– He he, é um religioso, garota, dá para acreditar? Um religioso.

 ****

Uma semana antes do telefonema.

Carniça se encontrava em um sítio afastado, próximo à rodovia Rio-Santos. O calor escaldante do dia ou o sol abrasador parecia não incomodá-lo, embora preferisse a noite, fosse pela temperatura ou pelo escuro.

Contudo, a espera não se fez demorar. Pouco mais de quinze minutos, um carro adentrou ao local. Um homem de terno, pouco acostumado àquela temperatura, desceu.

– Isto é o Inferno! – exasperou-se, enxugando a testa com um lenço, sentindo de imediato a camisa molhar.

– Se você está dizendo... – respondeu Carniça, com denotado desdém. – Mas é você que está de paletó.

– Não importa – respondeu homem, apressado. – Está confirmado? – perguntou, ansioso. Ele sabia que aquela informação nunca seria passada por telefone ou qualquer outro meio, senão pessoalmente.

Carniça acenou com a cabeça.

– Dia dez, daqui a uma semana, no cais do porto, a uma da manhã. Assim que chegar, ligue neste telefone e lhe será passado o local exato de onde estaremos – respondeu, entregando-lhe um pedaço de papel, com um número anotado.

– Ótimo, ótimo. O dinheiro será transferido ainda hoje – respondeu nervoso, se virando em seguida para retornar ao carro.

– Ô, chapinha! – chamou Carniça, fazendo o homem se voltar. – Não faço idéia de que tipo de reza você pretende fazer com a mercadoria, e nem quero saber, mas espero que você esteja presente no horário combinado. Não vamos liberar a mercadoria para mais ninguém, tá compreendido? O seu Casimiro não gosta de surpresas. Apronta prá cima da gente que tua igreja vira um amontoado de pedra, tá me entendendo? Se pisá na bola... – disse, balançando a cabeça em negativa – ...tua reza não vai adiantar prá nada!

O homem apenas confirmou com um aceno inquieto e entrou no carro. Em alguns minutos, se encontrava longe dali.

 ****

 Tempo atual.

– É uma suspeita, apenas uma suspeita, senhor presidente.

O homem calvo à frente enxugou a testa, continuando-se a movimentar de um lado a outro.

– Isso é muito sério, coronel Campos. A entidade que o senhor acabou de citar tem penetração nos principais municípios e vem se fortalecendo – comentou, apreensivo. – Sabe-se lá quantos deputados já a frequentam, inclusive senadores!

Pela centésima vez, ele se sentou à mesa, apenas para se levantar em seguida e reiniciar o vai e vem pela sala.

– Senhor presidente...

– Não podemos cometer o erro de nos precipitarmos e...

– Não vamos nos precipitar! – respondeu Campos, mais enfático do que pretendia. – Como lhe disse, são apenas suspeitas que nos apareceram, sequer imaginaríamos um envolvimento. Contudo, agora seria leviano não considerarmos a hipótese.

– Apenas quero que me entenda, não desejo um escândalo político. O segundo mandato vem aí, e se algo deste gênero ocorrer e você estiver enganado... – disse, deixando a frase no ar, erguendo os braços em sinal de desalento. – Às vezes tenho dúvida se fiz certo em autorizar a criação do SBI!

Aquela era a típica afirmação que tinha tudo para irritar profundamente um homem como Campos, mas apesar de tudo, controlou-se.

– Senhor presidente, – iniciou, procurando manter a voz pausada – não cometa o erro de julgar por antecipação. Somente me apresentei para nossa reunião padrão, e tudo o que fiz, foi lhe relatar o que se encontra em andamento. Caso o senhor não queira saber dos fatos, – disse, abrindo as mãos, de modo ostensivamente irônico – me diga e passarei apenas a lhe entregar um breve resumo.

O homem calvo se voltou de pronto. As bochechas se apresentavam vermelhas, com o corado subindo-lhe à testa e à calvície.

– Não disse isso! É lógico que quero estar inteirado de tudo!

– Pois então... – respondeu o coronel, sentindo-se bem próximo ao limite da paciência.

– Apenas não quero as coisas precipitadas. Meu predecessor...

– Seu predecessor foi um engodo! – explodiu Campos, interrompendo e erguendo-se por sua vez, fazendo o homem calvo recuar até a mesa. – É uma afronta citá-lo nesta sala, frente à Bandeira! Vai citá-lo para quê? Para falar daquilo que nada fez por este país ou pelo povo?

O homem calvo mal movimentou a cabeça, intimidado pela súbita reação.

– Recuso-me a escutar sobre um analfabeto bêbado, que flertava com o socialismo de guerrilha internacional e encobria uma verdadeira quadrilha, que espoliada o povo pelas costas, enquanto à frente, se desmanchava em sorrisos de débil mental e citava causas sociais que nunca levaram a nada! Admira-me o senhor, que foi eleito exatamente porque o povo não aguentava mais este tipo de postura!

– Coronel Campos, n-não quis dizer isso! – tentou articular. – Apenas enfatizo que espero que o senhor tome todas as precauções para não causar um escândalo político que...

Que venha atrapalhar suas pretensões à reeleição e blá, blá, blá, já sei! – pensou o coronel, não dando mais ouvidos àquele discurso. Não suportava pessoas fracas de caráter e pensamento.

– Senhor presidente, – disse por fim, não percebendo se interrompera ou não – fique tranquilo, tomarei todas as medidas necessárias para que nada de errado ocorra. Contudo, agora, deixe-me fazer o meu trabalho!

Sem mais uma palavra, virou-lhe as costas e saiu.

Nelson Magrini por Nelson Magrini:

Nelson Magrini é Engenheiro Mecânico, estudioso e pesquisador em Física, com ênfase em Mecânica Quântica e Cosmologia. Escritor, professor e consultor em Gestão
Empresarial e Cadeira Logística, além de Agente Literário, com serviços de Revisão Ortográfica e Gramatical, Preparação de texto (Copy Desk), Leitura Crítica e outros.


É autor de CEIFADORES – Anjo a face do mal II, ANJO A Face do Mal e Relâmpagos de Sangue (Novo Século Editora), de Os Guardiões do Tempo (Giz Editorial) e de ter participado das coletâneas Amor Vampiro, com o conto Isabella (Giz Editorial), e Anjos Rebeldes, com o conto Em Nome da Fé (Universo Editorial). Foi elaborador e colaborador do Fontes da Ficção.

nelson_magrini@yahoo.com.br