quinta-feira, 30 de junho de 2011

O PORTADOR DA LUZ - Parte 02


O homem avançava apressado pelos corredores, sem se deter ou observar a qualquer um, muito embora, todos pelos quais passava, o observavam disfarçadamente, de um modo ou outro.

De certa forma, os corredores compunham um verdadeiro labirinto, agora tomados por um sem número de pessoas, entre técnicos de informática, pessoal de acabamento, tapeceiros e muitos outros, em sua maioria, encarregados da segurança. Em várias salas, os móveis ainda nem haviam sido instalados e, mesmo assim, a movimentação e atividades eram intensas.

As conversas, os murmúrios e os comandos se misturavam e se sobrepunham uns aos outros, somados aos mais diversos ruídos, desde furadeiras, até ao martelar incessante, tudo constituindo uma cacofonia desagradável e, no entanto, nada daquilo parecia incomodá-lo, quando por fim, alcançou a sala a ele destinada, que diferente das demais, se apresentava impecável. Ao fechar a porta, um silêncio aprazível finalmente o envolveu, e todos os sons foram deixados do lado de fora.

Ainda junto à porta, a primeira coisa que fez, foi observar com satisfação a placa que lhe trazia o nome, ostentada à mesa. Douglas Fiori Campos, coronel Douglas Fiori Campos. Aquele era seu novo local de trabalho, e apesar de apenas aquela sala e algumas poucas outras já se encontrarem em condições operacionais, ainda assim, o orgulho que sentia exacerbava qualquer descrição.

O coronel pendurou o quepe, bem como o paletó, largando o corpo e se recostando na poltrona, de couro preto imaculado, encosto alto e reclinável, confortável o suficiente para lhe arrancar um sorriso do rosto.

Seguindo o mesmo padrão, o ambiente era muito bem decorado, com os móveis em mogno apresentando uma tonalidade que puxava para o avermelhado. Às costas, pendurado à parede impecavelmente branca, o Brasão da República e mais ao canto, presa a um mastro de pedestal, a Bandeira Brasileira.

Campos não podia se achar mais satisfeito. Após os mais variados contatos com diversos assessores, e com o presidente em pessoa, fora finalmente nomeado para o cargo de primeiro Diretor Geral do recém criado SBI, o Serviço Brasileiro de Inteligência. Fora necessária muita política e um sem número de visitas de cortesia, somado a infindáveis reuniões, no entanto, cada hora e dia, que passara por aquilo, valera a pena.

Campos era mais um dos chamados militares da nova ordem, mais um jargão que se iniciara com o coronel Moura, da Base Aérea Secreta de Cruzeiro. Assim como Moura, Campos era um militar que via e aplicava as mais avançadas metodologias de gestão existentes em empresas e industria, com o intuito de obter a máxima eficiência com a menor burocracia possível. Desde o emprego com sucesso de tais métodos, pelo coronel Moura, na base de Cruzeiro, muitos militares brasileiros haviam se capacitado em gestão avançada. Campos era o mais recente de uma lista que só aumentava a cada dia.

E com tal conhecimento, associado à vontade e capacitação para aplicá-lo, ter o cargo de Diretor Geral era uma vantagem sem precedentes na História do país. Além de poder definir os procedimentos a serem implementados, como bem lhe conviesse, o novo órgão não era apenas mais um braço do SISBIN, o Sistema Brasileiro de Inteligência. Era uma agência tão secreta que prestava contas diretamente ao presidente da república, cujas atividades eram autônomas e independiam de aprovação superior. E salvo alguns poucos assessores e militares do Alto Comando das Forças Armadas Brasileiras, ninguém mais sabia da existência daquele programa recém inaugurado de informações e contra-espionagem, com atuação efetiva dentro e fora do Brasil.

O orçamento destinado à agência saia do fictício Programa de Investimento para Subsídios à Pesquisa de Vanguarda, algo tão obscuro quanto o nome de batismo. E se tal programa acabasse por chamar a atenção de algum bisbilhoteiro, este apenas encontraria quilos e mais quilos de papéis, com as mais extravagantes e estapafúrdias teorias e pesquisas, tais como “A produção de combustível alternativo através da fermentação de excrementos de animais campestres” ou “Resíduos de celulose voltados ao enriquecimento do rendimento de usinas alcooleiras”.

Para todos os efeitos, a verba oficial era baixa, o que afastava os preocupados em escândalos especulativos ou aqueles que só se interessavam por levar alguma vantagem financeira, sobre qualquer coisa que pudessem descobrir e participar, mesmo que indiretamente.

O coronel ergueu a cabeça e olhou para o relógio, fixo à parede à frente. Passavam poucos minutos das oito da manhã. Às dez em ponto, iniciaria a primeira reunião de seu estafe. Ainda havia tempo, e esperava que todos os preparativos e serviços em andamento estivessem concluídos, no máximo, em pouco mais de uma hora e meia. Conforme seu cronograma mental, às dez e vinte, todos já se estariam inteirados de como se daria a rotina diária e os procedimentos a serem cumpridos, nas mais diversas situações. Às dez e trinta, planejava ligar o servidor principal e dar início ao recebimento dos mais diversos dados, de todos os recantos do país. A partir de então, o novo órgão se encontraria operacional e atuante.

De momento, como que para caracterizar sua maneira moderna e precisa de gerir, ele mesmo apelidou a instituição que nascia de Logística.

****

Chovera a madrugada inteira e ainda chovia, quando o Airbus tocou a pista do Aeroporto Internacional do Galeão, no Rio de Janeiro, naquele dia de frio incomum para a cidade.

A passagem pela Polícia Federal se dera rápida, afinal, o homem trazia apenas a bagagem pessoal consigo, além de haver bem poucas questões que alguém gostaria de fazer a um pastor e pregador, que retornava de países africanos. Quando alcançou à área externa, se deteve por uns instantes, deixando a chuva fina atingir-lhe o rosto. Após meses de seca e calor insuportável, se deparar com um Rio de Janeiro naquelas condições era uma verdadeira benção, mais um sinal enviado pela sabedoria d’Ele, que lhe mostrava o contentamento com seu retorno e com as idéias, através das quais, iria renovar e edificar, uma vez mais, a fé no país.

Ainda debaixo da fina garoa, como se apreciasse aquelas diminutas gotinhas se aglutinando e escorrendo pela testa e rosto, aguardou, quando um luxuoso automóvel, com vidros totalmente negros, encostou-se ao meio-fio. Prontamente, o motorista desceu, contornou o veículo e, sem uma palavra, abriu-lhe a porta traseira, postando-se rígido, em seguida, tal qual um soldado o faz, quando em presença de um oficial. O homem também nada disse, apenas esboçou um leve sorriso, em assentimento, entrando no carro em seguida. Em segundos, o veículo se pôs em movimento e se perdeu em meio ao caos do trânsito.

Ele havia voltado para casa, para seu lar e país, aquela que já fora uma nação temente a Deus e seguidor de suas leis, mas que, assim como as demais, havia deixado de ser.

Contudo, isso já não importava. Voltaria a sê-lo.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

O PORTADOR DA LUZ - Parte 01



Não havia vento de espécie alguma e o ar parado era quente e sufocante. A paisagem ao longe tremeluzia, apresentando-se deformada pelas ondulações de calor. Um pobre cachorro, tão magro que muitos jurariam que não ser possível estar vivo, se arrastava a procura de uma sombra. Possivelmente, até à noite, estaria morto.

Se algum lugar poderia ser descrito como o Inferno, certamente aquele era o lugar. Durante o dia, a temperatura atingia patamares indescritíveis, traduzidos em terras ressequidas e rachadas, em vastos rios transformados em córregos, e garbosos lagos em uma caricatura travestida em amontoados de poeira. Já havia meses, aquelas terras não viam o menor sinal de chuva ou brisa fresca, castigada pelo calor e pela seca destruidora e mortal.

O homem se vestia de maneira simples, calças caqui e camisa branca, já um tanto surradas, contrastando com os sapatos, que apesar da fina poeira que a tudo permeava, se apresentavam impecavelmente limpos e engraxados.

Ele caminhava ao sol, um livro velho, com a capa roída em vários pontos, à mão, uma antiga bíblia, e um crucifixo de madeira, bastante rústico e desgastado, na outra. Apenas um chapéu de palha envelhecido o protegia um pouco, mas fosse como fosse, não se incomodava pelos desconfortos. Até certo ponto, o desconforto era um preâmbulo para aquilo que se propunha a fazer, uma marca deixada por Deus àqueles que viviam sobre a Terra, lembrando àqueles que não o seguem, dos infortúnios maiores e inomináveis que haveriam de encontrar e sofrer pela eternidade afora. Era tido como um deus misericordioso, mas ainda assim, severo, como gostava de lembrar.

E era especialmente para estes desafortunados que o homem levaria a palavra, levaria a luz aos que precisavam ver, aos que teimavam em fechar os olhos, fosse pelo esquecimento, dos de mentes fracas, fosse pela distração, onde a vida de pecados tragava os de espírito covarde.

Mas ele se encontrava ali para lembrá-los; era o carrasco e, ao mesmo tempo, o pai bondoso que acariciava o filho, o alento e a esperança. E para alento e esperança, não existia desconforto ou provação. Nunca.

Muitas serão as pedras em que terei de pisar!

Pegou-se pensando, lembrando as palavras de um antigo pregador.

Mas serão estas mesmas pedras que edificarão os meus caminhos!

Completou o pensamento predileto com satisfação, sorrindo quase de maneira imperceptível, com o canto da boca.

Muitos anos havia se passado desde que ouvira tais palavras pela primeira vez, contudo, nunca as esquecera, e ainda possuíam o mesmo impacto sobre si, assim como tiveram em sua juventude. E graças àquelas palavras, e tentas outras que ouvira com louvor e gratidão, que se edificara, que fizera das pedras em seu caminho, a pavimentação que lhe sustentava a andança de fé, o levar da palavra àqueles que a desconheciam ou que acabaram por se desviar do caminho, o único caminho sagrado, que levava à redenção e ao momento maior de, por fim, se achar em paz e com a consciência tranquila do dever cumprido e a missão realizada.

E assim como antes, uma vez mais iria pregar. Contudo, desta feita seria diferente, seriam as últimas palavras que pregaria naquele pobre lugar. As últimas noites, quase sem dormir, haviam sido preenchidas por pensamentos e decisões, e mais do que nunca, sabia que era a hora de voltar para casa, de cumprir o destino que lhe era seu, que aprendera e enxergara depois de todos aqueles anos peregrinando pelas antigas colônias portuguesas no continente africano.

Chegara à hora de mudar tal situação. Apesar de todos os esforços, as pessoas haviam perdido a devoção, o respeito e a temeridade pelo divino e o mais sagrado. Não eram apenas uns poucos, pequenos punhados aqui e ali, que se desviavam ou fraquejavam. Eram muitos, espalhados por todos os lugares e cantos, os mais escondidos e esquecidos recantos do planeta. Era o levante dos perdidos, dos que desdenhavam e dos ignorantes, daqueles que faziam das mãos e atitudes, instrumentos propício ao inimigo maior, ao Mal infinito, ao Diabo.

No entanto, tudo aquilo iria mudar. Iria lembrá-los, abrir-lhes as feridas pútridas e expô-los, para depois, purificá-los, sem clemência ou fraquejo para com os fracos e pecadores, para os que viraram as costas a Deus. Esta era sua missão divina e o dever de sua vida. O caminho que lhe fora revelado e para o qual fora agraciado, e em nome do Senhor, as pedras haveriam de ser pisadas, e sobre sangue e suor, sofrimento e redenção, o caminho seria edificado mais uma vez.

Pouco antes de alcançar a grande palhoça, erguida para proferir a palavra, o homem se deteve, voltando-se para a aldeia à volta, na qual vivera aqueles últimos meses, observando-a demoradamente, sabendo que aquele aglomerado de coitados nunca chegaria a ser uma cidade de verdade, por menor e esquecida que viesse a ser. Apesar da fé, aquele lugar seria sempre uma aldeia carente, doente e sem futuro.

Por um momento, o aperto no coração o fez conjecturar que poderia mudar tudo aquilo, com o ouro e os diamantes. Entretanto, logo desistiu da idéia. Não podia fraquejar, não agora. A riqueza acumulada, às custas de tantas outras vidas, tinha um propósito diferente, outro objetivo e destino. A fé necessita sacrifícios e, assim como ele, seus filhos também fariam sua parte, fosse aqui ou em seu lar, sua pátria.

O homem subiu à palhoça e suspirou, como que sentindo o fardo que teria de carregar. Porém, após alguns segundos, como por milagre, pensou, já não havia mais cansaço ou pesar. Piscou repetidas vezes e começou a falar, e quando falou, a voz se inflamou e soou com ardor e convicção, com fé e decisão, o raio e o trovão.

No entanto, ele próprio não as ouvia. Seus pensamentos se achavam em outro lugar, bem distante dali. Pensava em seu país, no lar que, em breve, reencontraria.

Todavia, não seria simplesmente uma volta para casa, um retorno ao passado. Seria um novo começo e não voltaria sozinho. A luz e a palavra retornariam com ele.

O raio e o trovão.

Nelson Magrini por Nelson Magrini:

Nelson Magrini é Engenheiro Mecânico, estudioso e pesquisador em Física, com ênfase em Mecânica Quântica e Cosmologia. Escritor, professor e consultor em Gestão
Empresarial e Cadeira Logística, além de Agente Literário, com serviços de Revisão Ortográfica e Gramatical, Preparação de texto (Copy Desk), Leitura Crítica e outros.


É autor de CEIFADORES – Anjo a face do mal II, ANJO A Face do Mal e Relâmpagos de Sangue (Novo Século Editora), de Os Guardiões do Tempo (Giz Editorial) e de ter participado das coletâneas Amor Vampiro, com o conto Isabella (Giz Editorial), e Anjos Rebeldes, com o conto Em Nome da Fé (Universo Editorial). Foi elaborador e colaborador do Fontes da Ficção.

nelson_magrini@yahoo.com.br