quinta-feira, 8 de setembro de 2011

À LUZ DO DIA


História originalmente publicada na revista Scarium, nº 25, edição de maio de 2009.

Uma placa. Era tudo o que ela queria, apenas uma placa, mas sabia que seria querer demais, naquela estrada dos infernos.

Por um segundo, baixou o olhar para os mostradores, e foi quando o ponteiro da gasolina, no vermelho da reserva, lhe saltou aos olhos.

– Mas claro, só me faltava essa! Agora, além de uma placa, preciso de um posto de gasolina. E é óbvio que...

Rita se calou. A manhã era clara e com sol, e com nada a lhe obstruir a visão, naquela estrada reta e sem fim, ela por fim viu uma placa.

Reduzindo a velocidade, se aproximou devagar e estacionou na faixa de terra esburacada à direita, aquilo que alguém não muito esperto, ou esperto demais para ter desviado dinheiro de obras públicas, chamava de acostamento.

Mas o que importava era a placa.

Trevópolis.

Apenas o nome e uma seta indicando uma estradinha cercada pelo mato, ainda mais estreita e isolada.

Para Rita, mais parecia uma rua, mas pouco importava. Era uma cidade e lá, certamente, haveria um posto de gasolina, além de poder se informar sobre sua localização.

– Vamos lá. Quanto antes, melhor! – disse, em voz alta, tentando se animar, mas no íntimo, praguejando por não ter pegado a saída de costume. Graças a isso, acabara no meio do nada. E tudo para economizar um pedágio.

– Malditos políticos! Logo teremos pedágio até para sair de casa!

A via encontrava-se em péssimo estado, esburacada e com mato alto de ambos os lados, o que a impedia de desenvolver acima de cinquenta quilômetros por hora. A princípio, também lhe parecia outra reta sem fim, mas logo se deparou com uma curva fechada à frente e, em seguida, um posto de gasolina.

Um sorriso aflorou-lhe ao rosto, certa de que aquela manhã, para fazer jus ao sol e ao lindo céu sem nuvens, entraria nos eixos. Rita manobrou e encostou ao lado da bomba assinalada gasolina e esperou. Contudo, após um tempo, começou a crer que ninguém a percebera.

– Alô... é para hoje! – disse em voz alta, buzinando em seguida.

Passaram-se mais alguns minutos e ela continuou ali, sem que ninguém aparecesse.

– Oi! Não tem ninguém para atender? – perguntou, descendo do carro, sem obter qualquer resposta.

Sem perder mais tempo, destravou a bomba e conectou-a ao bocal. Já vira os frentistas fazerem aquilo tantas vezes que não era segredo algum.

– Pronto, sem frescuras! Agora é só pagar, descobrir onde estou, e cair na estrada.

Rita se dirigiu a uma construção de madeira, imaginando que ali deveria ser o caixa. Se aquela era a atenção que davam aos clientes, aquele posto deveria ter pouco movimento. De fato, não vira nenhum outro veículo, desde que ali chegara.

– Oi, como não me atenderam, eu mesma abasteci, e deu um total de...

Rita se calou. A construção de madeira abrigava uma pequena lanchonete com um balcão e três bancos, e o caixa, com a inconfundível armação para cigarros. Mas não havia ninguém ali.

Rita ficou imóvel, a meio caminho entre a porta e o caixa, pega de surpresa. Como era possível não haver ninguém naquele lugar?

– Alô... tem alguém aqui? – perguntou, olhando ao redor. Por um momento, imaginou que o responsável estivesse no banheiro, porém havia apenas um toalete, ao fundo, e a porta aberta não deixava dúvidas de que se encontrava vazio.

Mais curiosa do que irritada, Rita saiu, olhando todos os cantos. Fosse qual fosse a direção para qual virasse, não via sinal de pessoa alguma.

– Mas que inferno! Daqui a pouco vou embora sem pagar! – disse, em em alto e bom tom. – Alô... estou querendo pagar! Pagar! Se ninguém vier cobrar, vou embora! – gritou, ainda mais alto.

E ainda assim, ninguém apareceu.

De súbito, notou que não só não havia ninguém no posto, mas também na rua, nem mesmo carros. Rita achou aquilo muito estranho e, de repente, uma sensação de inquietação passou a incomodá-la. Que lugar seria aquele, uma cidade fantasma?

O pensamento em nada a confortou. No alto, o sol brilhava e a claridade do dia destoava daquele cenário. Uma vez mais, retornou para dentro. Ainda não se convencera de que não havia ninguém por ali. Aproximando-se, olhou atrás do balcão. Havia pão fresco, o que indicava que alguém estivera naquele local e pelo horário, ainda cedo, não poderia fazer muito tempo. Uma rápida vista no caixa e pode perceber que havia dinheiro, o que tornava a situação ainda mais inusitada. Quem, em sã consciência, deixaria dinheiro daquele modo, assim desprotegido?

E se a pessoa teve de fugir?

O pensamento a fez estremecer. Parecia razoável. Poderia ter havido uma tentativa de assalto e...

Uma fugaz sombra, percebida com o canto do olho, a fez se virar abruptamente.

O coração de Rita saltou, passando a bater acelerado, enquanto um frio lhe comprimia o estômago. Apesar do que pensara ter visto, não havia nada às costas.

Poderia ter sido um gato, refletiu. Ou pior, um rato. Não duvidaria, dada a aparência da lanchonete. Assim que se voltou e fez menção em sair, novamente lhe parecer ver uma sombra, ou um vulto, correr junto ao chão, às costas.

Rita se virou e ficou petrificada. Somente os olhos se moviam, indo de um canto a outro, quase frenética. Não havia nada ali, mas poderia jurar que vira algo, por duas vezes. Não podia ser imaginação.

De súbito, um sentimento de urgência se apoderou dela, e a vontade de estar fora daquele lugar falou mais alto.

Sem se importar pela gasolina, deixou a lanchonete e, uma vez mais, saiu à luz do dia. Por um momento, a claridade foi reconfortante, mas o coração quase parou quando, em seguida, percebeu outra vez o movimento vago e fugaz, sempre pelos contos dos olhos.

Havia algo ali, e agora se encontrava do lado de fora, junto a ela.

Rita se precipitou para o carro, entrando apressada e batendo a porta. Tudo o que queria era sair dali o mas rapidamente possível. Já nem lhe importava se informar. Tomaria o mesmo caminho que fizera, retornaria à estrada e voltaria até chegar à rodovia principal. Que aquele lugar fosse para o Inferno.

Todavia, sobressaltou-se quando percebeu os mesmos movimentos, imprecisos e difusos, através do retrovisor e à frente. Algo se movia rápido, correndo ou rastejando pelos cantos, mas algo que não conseguia precisar ou ver com clareza.

Rita nem quis imaginar o que poderia ser. O sentimento de urgência crescia ao extremo, agora se somando a angustia e medo. Tinha de sair dali o quanto antes. Deu a partida, engrenou a marcha e arrancou com um tranco, fazendo uma volta fechada, sem se importar com mão ou contramão, e retornou pelo mesmo caminho que viera.

O veículo avançava rápido, e Rita nem se preocupava com os buracos. Reduziu um pouco, assim que começou a contornar a curva fechada, o mínimo para fazê-la em segurança. Olhou pelo retrovisor algumas vezes, insistente, mas tudo em que pensava era se deparar com a grande reta e se afastar cada vez mais daquele lugar.

Rita contornou a curva e mais e mais, e de súbito, começou a achar que aquela curva se estendia bem além do que quando viera, mas como tal poderia ser possível?

Ela não tinha uma verdadeira referência para se basear, contudo, notou que se deslocava quase a noventa graus em relação ao mato, que outrora margeara a pequena estrada. Quando deu por si, percebeu que se embrenhava cada vez mais naquela cidade.

****

O Sol caminhava para o alto, indicando que o dia seria de muito calor. E era exatamente esse cenário calmo e tranqüilo que mais a angustiava. Era pleno dia, uma manhã belíssima, mas por qualquer rua que tomasse, não havia ninguém à vista.

Não demorou, chegou ao centro daquela cidadezinha. Dificilmente, ali haveria outro local com aquelas características, algumas lojas reunidas, uma lanchonete e um café, fora a praça, é claro. Cidade do interior que se preze, independente do tamanho, tem de ter uma praça.

Contudo, aquilo não a confortava nem um pouco. A falta das pessoas, somada à luz do dia, tornava a paisagem tão assustadora como se fossem trevas.

E o silêncio? Chegava a ser opressor. Não se escutava o menor ruído, o que tornava a paisagem ainda mais surreal.

Rita cogitou em descer e procurar por algum morador, mas a lembrança dos vultos, somada a irrealidade daquela solidão desesperada, a fez se manter dentro do carro e em movimento. A situação era muito pior do que aparentava. As pessoas não haviam ido embora, tornando aquela uma cidade fantasma. Havia carros estacionados e lojas abertas. Apenas não havia ninguém. Fosse o fosse que acontecera, deveria ter sido de repente, sem que os habitantes esperassem. Não fora algo como todo mundo fechar suas casas, pegarem seus carros e abandonarem a cidade; parecia que eles simplesmente haviam desaparecidos.

Rita continuava a seguir pela rua central. Acreditava que, em algum ponto, haveria uma indicação para a rodovia, um meio de sair dali. Ansiosa, olhou para o marcador de gasolina, reconfortada de que, agora, ele indicava tanque cheio. Assim que cruzou uma rua transversal, olhou para o lado, talvez na esperança de ver alguém, mas como vinha acontecendo, se apresentava deserta como as demais.

E foi nessa fração de segundo que viu. Primeiro um vulto muito rápido cruzando-lhe o ângulo de visão, sempre pelo o canto dos olhos. Em seguida, assim que retornou a visualizar a frente, freou de pronto, estancado o movimento do carro e arrastando os pneus contra o solo.

Há poucos metros, um muro lhe barrava o caminho. A longa rua central não existia mais.

****

Rita não pensou duas vezes. Engrenou a primeira e pisou fundo no acelerador, arrancando a toda, entrando à direita, uma descida acentuada, e acelerando com tudo.

Aquilo era uma loucura. Ruas e avenidas não mudavam de tamanho ou direção, assim como muros não surgiam do nada. A esta altura, se encontrava mais que apavorada. Algo irreal acontecia, e ela se via em meio àquilo tudo. E o que seriam as sombras? Há muito descartara a possibilidade de ratos ou qualquer outro animal; o que se movia não era nenhum animal, ao menos, algum que conhecesse.

De súbito, uma curva a frente a obrigou a frear e a reduzir. Caso entrasse naquela velocidade, capotaria com certeza. Ainda assim, os pneus guincharam em protesto pela curva em velocidade. A frente do carro guinou para a direita, fazendo-o oscilar perigosamente. Por um segundo, Rita achou que tombaria, que ficaria por ali mesmo e, se não sofresse nada de mais grave, sobraria a mercês daquilo que vinha ocorrendo.

Contudo, por sorte o carro guinou para o lado contrário, evitando por pouco de bater à guia, choque que certamente o faria capotar. Finalmente, Rita firmou o volante e conseguiu trazer o veículo para a trajetória correta, avançando em seguida pela rua, o suor lhe gotejando em abundância. Escapara por pouco, mas sentia que se não conseguisse deixar aquela loucura em breve, acabaria se machucando ou algo pior.

Contudo, não teve tempo sequer para se desesperar com a situação. Mal alinhou o carro, seus olhos saltaram com a surpresa. Em meio àquele nada imóvel em que se via envolvida, de súbito, outro carro se precipitava em direção contrária, vindo à toda velocidade contra ela.

****

Rita freou violentamente, fazendo o veículo derrapar outra vez. O choque era inevitável, mas o grito de pavor ficou-lhe preso à garganta, quando o impossível aconteceu. Como se nunca houvesse existido, o outro veículo sumiu.

Por fim, o grito se soltou, forte e desesperado. Lágrimas rolavam por seu rosto. Era insano, não podia estar acontecendo. Mas para seu desespero, parecia ser apenas o começo. Assim como o carro, preste a abalroá-la, outros estacionados começaram a desaparecer, e não era só. O mesmo acontecia em prédios e casas. Tudo à volta parecia estar sendo engolfado pelo nada. E foi quando viu, com o canto do olho, não uma, mas dezenas de sobras furtivas, correndo entre os cantos. E desta feita, vinham em sua direção.

E foi nessa fração de segundo que percebeu, à direita, separada apenas por uma pequena calçada, o caminho pelo qual viera, a estada ladeada de mato. Rita engrenou a marcha e acelerou com tudo, passando por cima da calçada, impondo tormento a seu veículo. Mas não se importou com isso. Assim que chegou à estradinha, avançou a toda velocidade. Mais ao longe, podia ver fugazes  sombras serpenteando, aparecendo e se escondendo.

Respirou aliviada quando chegou à estrada e tocou rumo à rodovia principal. Que aquele lugar fosse para o Inferno. Talvez estivesse indo mesmo.

E enquanto o carro desaparecia ao longe, de súbito, a placa da cidade, indicando Trevópolis, se deslocou alucinada para um lado e outro, e após uma breve indecisão, desapareceu sem deixar vestígios.

No alto, o Sol brilhava forte e claro.

5 comentários:

  1. Fiquei apreensiva e muito curiosa, se o começo é assim até o seu final será pura adrenalina... Adorei.

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  2. pontos fortes: cara, muito bom! dá pra ser um romance...é muito dinâmico e intenso! gostei!
    pontos fracos: só faltou um pouco algumas informações como: pra onde ela ia, de que parte do brasil ou mundo ela estava? por que ela estava viajando...esses detalhes;
    parabéns escritor!
    PABLO VARGAS

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  3. Prezado Nelson

    Excelente narrativa, me fez recordar a serie Quinta Dimensão,
    Tenho certeza que será um grande sucesso!

    Jose Paulo

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  4. Obrigado pelos comentários, pessoal.
    Abraços!

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  5. Gostei muito. Ótimo! Não consegui parar de ler até chegar logo ao final. Adorei. Parabéns, Nelson. Mel Rosa.

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Nelson Magrini por Nelson Magrini:

Nelson Magrini é Engenheiro Mecânico, estudioso e pesquisador em Física, com ênfase em Mecânica Quântica e Cosmologia. Escritor, professor e consultor em Gestão
Empresarial e Cadeira Logística, além de Agente Literário, com serviços de Revisão Ortográfica e Gramatical, Preparação de texto (Copy Desk), Leitura Crítica e outros.


É autor de CEIFADORES – Anjo a face do mal II, ANJO A Face do Mal e Relâmpagos de Sangue (Novo Século Editora), de Os Guardiões do Tempo (Giz Editorial) e de ter participado das coletâneas Amor Vampiro, com o conto Isabella (Giz Editorial), e Anjos Rebeldes, com o conto Em Nome da Fé (Universo Editorial). Foi elaborador e colaborador do Fontes da Ficção.

nelson_magrini@yahoo.com.br